São Paulo, sexta-feira, 29 de julho de 1994
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Universidade e iniciativa privada

MARILENA CHAUI

Não é minha intenção polemizar com José Goldemberg ("A universidade e o neoliberalismo", edição de 7/07). Primeiro, porque polêmicas não favorecem o debate de opiniões, pois negligenciam a diferença de pressupostos e das lógicas argumentativas dos debatedores, transformando-os em meros oponentes que desejam persuadir aos demais; e porque julgo a melhor resposta a seu artigo já dada por artigos e entrevistas dos professores doutores Pimentel Wutke e Isaias Raw, relatando a situação calamitosa de abandono em que se encontram nossos grandes institutos públicos de pesquisa.
Aliás, justamente aqueles que se caracterizam pela total independência face a interesses das indústrias farmacêuticas, química, de fertilizantes e agrotóxicos, alimentícia e das empreiteiras.
Certamente, pesquisas nesses campos não deixaram de ser feitas em São Paulo e, dada a situação desesperadora dos institutos públicos, conclui-se que a investigação vem sendo feita em outros lugares (na e fora da universidade) para atender aos interesses das empresas privadas, e não aos da sociedade. Não responderia a Goldemberg, se não houvesse sido nominalmente citada por seu artigo.
A discordância de nossas posições depende da resposta a uma única pergunta: deve a universidade pública gozar de autonomia acadêmica para definir suas atividades e o modo de realizá-las ou deve aceitar como critério satisfazer aos interesses da iniciativa privada?
Em outras palavras, é a universidade que decide em que, como e quando relacionar-se com as empresas ou é o contrário?
A pergunta pressupõe uma certa concepção da democracia. Se esta for considerada apenas como regime político baseado na lei e na alternância no governo, através da disputa de partidos políticos que representam interesses de grupos sociais com poderes desiguais, a resposta será diferente daquela que, além dos aspectos anteriores, considera a democracia uma forma geral da existência social baseada na criação, reconhecimento e garantia de direitos e deveres dos cidadãos.
Neste segundo caso, a distinção fundamental se faz entre carência, privilégio, interesse e direito. Carências e privilégios são específicos e particulares; interesses são gerais para grupos e classes sociais diferentes; direitos são universais (ou porque são os mesmos para todos ou porque, sendo diferenciados, são universalmente reconhecidos por todos como legítimos).
Carências e privilégios não têm como generalizar-se em interesses nem universalizar-se em direitos (a satisfação das carências e a quebra de privilégios é precondição e não a finalidade da democracia); interesses particulares e de pequena generalidade social também não conseguem universalizar-se em direitos.
Numa democracia, portanto, a universidade pública volta-se para os direitos dos cidadãos e não para a satisfação de interesses, sejam estes os das corporações empresariais ou os das corporações universitárias. Isso exige que possua autonomia para decidir e realizar suas atividades, devendo prestar contas ao poder público e à sociedade.
Goldemberg parece operar com pressupostos diferentes dos meus, tomando a democracia pelo prisma dos interesses e, por alguma razão, entre os interesses das corporações empresariais e os das corporações universitárias, escolhe os das primeiras (não há como saber, na esfera dos interesses, por que os da Fiesp, Ciesp, Febraban etc. seriam mais válidos e legítimos do que os da Adusp e do Sindusp).
Não se trata de sacralizar nem satanizar os interesses das corporações empresariais, nem os das corporações universitárias, mas de indagar se a discussão sobre a universidade pública democrática deve ser feita no campo dos interesses ou nos dos direitos.
Se no dos interesses, é preciso provar por que uns são mais legítimos do que outros; se no dos direitos, então a autonomia universitária é precondição para definir campos de interesses.
Quanto ao resto, façamos alguns reparos.
1) Há engano em estabelecer comparação entre as grandes escolas francesas (sem vínculo com as universidades) e as grandes escolas profissionalizantes ligadas à USP: as primeiras nasceram sem vínculo com a universidade não por causa da distinção entre ciência pura e aplicada, como imagina Goldemberg, mas sob os imperativos da ideologia positivista e da visão napoleônica do Estado, isto é, destinadas a formar quadros técnicos e administrativos do império francês, por isso recebendo como estudantes os filhos da antiga nobreza e da grande burguesia, enquanto a universidade, seguindo a tradição de 1789, afirmava o direito universal à educação e à ciência.
2) O CNRS (Conselho Nacional de Pesquisa Científica) francês é uma instituição exemplar que deveria existir no Brasil, reorganizando nossas instituições de fomento à pesquisa (enquanto ministro da Educação, Goldemberg poderia ter pensado nisso).
Contrariamente ao que afirma, o CNRS não opera apenas fora da universidade, mas em três frentes simultâneas, financiando: institutos públicos de pesquisa; grupos de pesquisadores ou pesquisadores individuais com ou sem vínculo com a docência universitária; e grupos universitários de pesquisa, bem como professores universitários que se dedicam simultaneamente à docência e à pesquisa.
Bastaria ler com atenção as capas ou contracapas das publicações da produção universitária (particularmente de humanidades, visto que Goldemberg parece supor que estas não são subsidiadas pelo CNRS) para encontrar a referência àquele financiamento.
3) Sobre a diversidade interna na universidade, não só não sou contra ela, como a defendo, julgando um dos desastres da "avaliação" implantada na USP, justamente, a desconsideração dessa diversidade.
Goldemberg e eu concordamos em que seja bom para a universidade possuir docentes cujas experiências extrapolem a esfera da vida acadêmica, oferecendo-lhe oportunidade para contacto mais estreito com a sociedade, e, no caso das profissões diretamente voltadas para o mercado, é interessante que os docentes possam informar, orientar e encaminhar seus estudantes.
Discordamos, porém, num aspecto: o uso privado da universidade por docentes. É frequente, nas universidades norte-americanas, docentes serem consultores de empresas e fundações; as universidades, porém, estabelecem o limite de tempo para as consultorias e, nas de maior vulto, não só o consultor, mas também a universidade recebe por elas.
Desconheço procedimentos semelhantes nas grandes escolas da USP. Esta opera com fundos públicos e, portanto, com maior razão, deveria ser retribuída pelos serviços externos de seus docentes.
4) Não me referi ao "produtivismo" do modelo neoliberal, mas à ausência de reflexão crítica, por parte da USP, sobre o encolhimento do espaço público e alargamento do espaço privado, o desemprego e a inflação estruturais, criando bolsões de excluídos miseráveis (carência da maioria, privilégio da minoria e, portanto, ausência de direitos ou de cidadania) e a transformação da ciência e da tecnologia em forças produtivas (submetendo os conhecimentos a uma única lógica, a do mercado, portanto, ausência de diversidade real).

MARILENA DE SOUZA CHAUI, 52, é professora titular do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo) e autora de "O que é Ideologia" e "Cultura e Democracia", entre outros livros. Foi secretária da Cultura do município de São Paulo (administração Erundina).

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