São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Um país inteiro esquecido nos sertões

Uma viagem através do Brasil de Guimarães Rosa e Euclides

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nada como viajar para saber onde estamos e quem somos. Quando, no último verão, vi a surpreendente paisagem de uma vereda no norte de Minas Gerais, ou quando abri os braços diante da imensidão da Chapada Diamantina, na Bahia, ou quando fiquei assistindo à enxurrada barrenta da cheia do rio São Francisco passar rente, bem debaixo do madeirame da ponte onde eu me equilibrava, percebi pela primeira vez o Brasil a que chamam de "gigante adormecido".
"Adormecido" é o país cheio de tocas, recortes geográficos, paisagens que poucos conhecemos. Bastou uma viagem de aproximadamente seis mil quilômetros de carro pelos sertões brasileiros para constatar que um de nossos males é também esse "sono", essa "preguiça" de conhecer território tão grande.
Mas "preguiça" é eufemismo para o nome mais grave de um problema central de educação e geografia, de cultura. Nesta viagem, tive a impressão de que para cada três turistas encontrados no interior do país somente um era brasileiro. Seria mesmo interessante contar quantos brasileiros vão para Miami comprar tênis e eletrônicos nas férias e quantos vão viajar pelo interior do Brasil.
Ninguém, afinal, está disposto a trocar Paris, Nova York ou Berlim por Urucuia, Carinhanha ou Cocos. Ninguém se anima a enfrentar miséria, água infectada, sol de 40 graus, estradas assassinas, banheiros fétidos, restaurantes imundos e mosca, muita mosca pelos meandros das chapadas e caatingas brasileiras.
Morreu entre as décadas de 70-80 uma certa disposição de descobrir o país, incentivada pela movimentação "on the road" dos hippies nos anos 60, e oficializada depois pelo muito útil projeto Rondon.
O projeto Rondon –sem nacionalismo ingênuo de minha parte– teve o grande mérito não só de mostrar a jovens de todas as classes o país onde viviam como também de levá-los a pensar e atuar sobre a realidade desse país.
Só se valoriza e se defende o que se conhece. Se o jovem adolescente perdido nos confins de Canudos, Bahia, tivesse a chance de passar suas férias escolares na casa de um adolescente paulista, morador dos Jardins, e vice-versa, os dois aprenderiam mais sobre o Brasil do que em todas as aulas de geografia de suas vidas.
Num país grande como o nosso, essa espécie de intercâmbio cultural que ocupasse as férias dos estudantes devia constar do programa oficial das escolas, receber patrocínio e apoio de todas as iniciativas. Que o jovem do Amazonas trocasse férias com o da serra gaúcha; o do Acre fosse para o Espírito Santo, o do Ceará para o Pantanal e assim por diante.
Mas o brasileiro deve ser por natureza, como já dizia Euclides da Cunha, um povo de "mal unidos", que não se interessa por conhecer o lugar onde vive. Vão antes –aqueles que podem– fazer intercâmbio com a Disneylândia ou a Dinamarca, sem nunca terem ouvido falar do Piauí.
Parte das causas desse desinteresse estará talvez na falta de uma arte popularizada e que servisse às dimensões do país –o romance, o cinema. Basta viajar um pouco pelo interior do Brasil para compreender o quanto um país continental se beneficia de uma arte como o cinema. Não se formaram à toa os vínculos entre a indústria cinematográfica e o nacionalismo norte-americano.
Um país sem cinema é um país sem espelho, sem imaginário, sem autoconhecimento, sem auto-estima nem autocrítica. É quase como se fosse necessário que nos olhássemos ali do tamanho daquela tela –porque nossas paisagens só cabem ali, nossa diversidade, nossas histórias, nossa geografia grandiloquente.
É uma ilusão pensar –como se pensa– que a televisão dá conta desse recado da expressão brasileira, levando suas ondas retransmissoras aos quatro cantos do país. Até leva, mas não contribui para coisa que preste; sabe inclusive afastar o país dele mesmo, isolá-lo onde ele já se isola.
As antenas parabólicas misturam-se aos carros de boi na paisagem desolada de Serra dos Gaúchos, 200 km a oeste de Januária, no norte de Minas Gerais –enigmática comunidade de aproximadamente dois mil gaúchos, prósperos plantadores de soja e criadores de gado, que, instalados na região desde 1977, experimentam uma pequena guerra de secessão contra os mineiros do lugar.
Isolado de tudo, ligado aos municípios vizinhos por estradas de terra apenas, cercado pelo cerrado, pelo mato grosso do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, Serra dos Gaúchos assiste de noite à imagem trêmula da televisão que o aproxime do país.
Mas a televisão só aproxima muito relativamente o país do país; no interior, vira uma caixa de fósforos insignificante, uma espécie de gameboy cansativo. A realidade da faixa litorânea semi-civilizada, que passa na televisão –melhor esta do que a caricatura vexatória do interior pintada de vez em quando nas novelas–, não diz nada àquele lugarejo onde os homens acabam se embebedando nos bares, contando e recontando as mesmas histórias de todas as noites.
Alto-norte brabo
Estávamos em Minas Gerais, nos gerais, na boca de uma vereda no sertão mineiro, o "Alto-norte brabo" de Guimarães Rosa, e na companhia de seus narradores, homens que contam e recontam –como no conto "Meu Tio o Iauaretê"–, para um interlocutor que parece ausente da cena, num discurso detalhista e obsessivo, episódios vividos naquelas matas, entre onças e cobras.
Vínhamos pelas estradas de Minas rindo de uma certa ingenuidade na mensagem dúbia das placas de sinalização: NÃO USE O ACOSTAMENTO, uma gritava, quando queria dizer "não trafegue pelo acostamento"; NÃO SEJA MULTADO, a outra berrava sua propaganda de eficácia duvidosa.
Até que começou a Minas dos livros, as placas ficaram literárias: LASSANCE, uma delas dizia, indicando a cidade de onde vinha o personagem Diadorim, no lugar "os-Porcos", do romance "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa.
Nesta viagem de certo modo literária, era impossível não fazer comparações entre a realidade e a ficção ou o documento –entre a verdadeira Lassance e a outra, entre a Canudos de hoje e a do passado semi-submerso pelas águas do açude Cocorobó mas registrado em "Os Sertões", de Euclides da Cunha.
Assim chegou o momento em que estávamos olhando de frente para uma vereda pela primeira vez na vida, no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, uma área verde de 83.364 hectares de fazendas desapropriadas e em processo de desapropriação, sob responsabilidade do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), no extremo noroeste de Minas, bem na divisa com a Bahia.
Nunca, nas minhas aulas de geografia –ou de literatura sobre o "Grande Sertão"– tinham dito que uma vereda era aquilo: a paisagem magnífica de uma vasta clareira de gramínea verde-clara, plantada de buritis a perder de vista. Os buritis enfileiram-se às dezenas, separados quase que simetricamente um do outro, e vão-se embora até onde não se vê mais. Ao pé deles, o forro da gramínea verde-clara encobrindo um charco, um pântano capaz de engolir o gado e a gente desavisada. Numa vereda ninguém pisa, só a palmeira do buriti nasce e floresce.
(Continua à pág. 6-11)

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