São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Os 'desenhos de luz' de Geraldo de Barros

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando escreverem a história da fotografia no Brasil –quando surgir algum excêntrico que a escreva–, o trabalho de Geraldo de Barros, 71, vai receber um capítulo exclusivo.
Entre 1948 e 1951, Barros inaugurou no país a fotografia não-realista, num ato semi-intuitivo de pioneirismo que ainda está por ser explicado. Essas fotos (mais de cem), a maioria nunca vista no Brasil, estarão na exposição que o Museu da Imagem e do Som abre na próxima quinta em São Paulo, "Geraldo de Barros, Fotógrafo".
Delas, apenas as da série "Fotoformas" foram expostas antes –mas uma vez só, e em 1950, no Museu de Arte de São Paulo. Entre os privilegiados que lá estiveram, o artista suíço Max Bill, papa do concretismo, que seria premiado na 1ª Bienal de São Paulo (1951), disparou elogios entusiásticos.
Não era para menos. Todo o credo vanguardista dos anos 50 está ali, em estado de gestação –inclusive a pintura do próprio Geraldo de Barros, um dos maiores artistas concretistas brasileiros.
Rolleyflex
Tudo começou em 1948, quando Barros comprou uma câmera Rolleyflex 1939. Até então só tinha fotografado jogos de futebol, despretensiosamente. Mas o olho para formas e estruturas rigorosas, o desgosto inato pelo naturalismo, foi-se impondo ao estudante de pintura figurativa, aluno de Takaoka. Uma inventividade que a Rolleyflex revelou.
"Fotografia", etimologicamente, significa "desenhar a luz". Para Barros, não havia nada como a Rolleyflex para cumprir essa definição. Partiu então para tratamentos gráficos que até hoje valem a qualificação de sua fotografia como "fotografia de pintor".
As fotos da série "Fotoformas", por exemplo, feitas em grande parte na Estação da Luz, dialogam com a pintura de Piet Mondrian (1872-1944), com sua composição geométrica. Outras, feitas de um muro no Tatuapé, remetem diretamente às figuras de Paul Klee (1879-1940). Outras ainda –em que Barros usou um pano preto com um orifício mínimo diante da objetiva, para aumentar o tempo de exposição à luz– têm qualidade pictórica evidente: garrafas que lembram as de Giorgio Morandi (1890-1964), por exemplo, em sua estática.
Experimentos
Mas é reducionismo falar em "fotografia de pintor". Barros nunca mais fotografou, mas o que fez até 1951 é trabalho de um fotógrafo "par excellence", que sabe aproveitar o acaso e encontrar não só a luz certa, mas também o enquadramento certo. Sobretudo, que experimentou a técnica até não ver mais para onde ir.
Negativos cortados e rearranjados, o que cria variações em cima do padrão fotografado (telhas, vitrais, ferragens); negativos riscados ou pintados a nanquim, o que discerne formas em meio ao caos (como o galo achado na irregularidade da pedra de um túmulo); negativos com alfinetes atravessados, o que retira a função de registro da fotografia –Barros experimentou diversos caminhos.
Experimentou inclusive fotos posadas, com as que fez de si mesmo caracterizado de personagem de filme "noir". Também aboliu o quadrilátero da foto convencional, em outras ocasiões.
Não foi, portanto, só o fundador da fotografia construtivista no Brasil. Fez fotos que se pode chamar de surrealistas, que lembram Man Ray; fotos algo expressionistas, que, na linhagem alemã, usam intervenções no negativo; e fotos realistas, como as tiradas na Europa, que ainda que sejam mais "jornalísticas" (feitas para registro) guardam certo formalismo.
Outra dívida da historiografia brasileira para com Geraldo de Barros é sua luta bem-sucedida para a inclusão da fotografia como categoria artística na 2ª Bienal Internacional de São Paulo.
Carreira
Claro que, nessa impressionante variedade, destacam-se as fotos construtivistas. Não só por sua qualidade e pioneirismo, mas também pelo modo como se articulam dentro da carreira de Barros.
São ao mesmo tempo síntese e exceção do seu estilo. Toda a sua formação, todas as suas preocupações estão lá. Mas não está lá o rigor extremo de sua obra concretista, de seus principais trabalhos, como a série de pintura em fórmica "Jogo de Dados".
Elas, em suma, não são exatamente do mesmo Geraldo de Barros que, em 1954, fundou o Unilabor, um ateliê que apostava na utopia de unir arte e design. Ou seja, que pretendia produzir "protótipos" para ser reproduzidos em linha de montagem, e não mais a obra de arte única, distanciada do consumidor pela fetichização promovida por museus e galerias.
As fotos não foram feitas com essa perspectiva "industrial", como falava o manifesto do Grupo Ruptura, lançado por Barros e outros (Waldemar Cordeiro, Lothar Charoux e Luís Sacilotto) em 1952. Trazem ainda resquícios de uma poética menos rígida.
Uma das melhores fotos da exposição do MIS, "Abstrato", tirada em Paris em 1951, resume essa idéia. Basicamente, são quadriláteros à Mondrian, que ganham dinâmica pela sucessão de planos; mas há também ali "nervuras" que tomam o fundo, criando tensão com aquele geometrismo –formas não-geométricas que o Unilabor jamais fabricaria.
Acervo
Isso tudo, em 1991, encantou o jornalista Charles-Henri Favrod, diretor do Museu de l'Elysée, em Lausanne (Suíça), que possui um dos acervos fotográficos mais importantes do mundo. Favrod promoveu, naquele ano, uma exposição das fotografias de Barros no l'Elysée; e o museu foi feito depositário dos negativos. Na próxima sexta, Favrod fala no MIS sobre a fotografia de Geraldo de Barros.
As fotos da exposição serão doadas ao MIS. Um livro com elas será lançado, em setembro, com textos de Favrod, Max Bill e de Ricardo Ohtake, secretário de Cultura. A secretaria da Cultura de São Paulo co-edita o livro com a editora Raízes.
Mas foi preciso que os suíços relembrassem a precisão de um dos grandes fotógrafos brasileiros.

Exposição: Geraldo de Barros, Fotógrafo
Onde: Museu da Imagem e do Som (av. Europa, 158, tel. 011/280-0896, Jardins, zona sul de São Paulo)
Quando: abertura quinta; até 25 de setembro
Visitação: de terça a domingo, das 14h às 22h
Entrada: franca

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