São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Globalização subdesenvolvida

JOSÉ CARLOS DE SOUZA BRAGA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A chamada globalização do capitalismo é um fenômeno de extrema complexidade, que tem imposto uma instabilidade estrutural tanto na periferia quanto em países centrais, como os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão. É neste processo, ainda pouco compreendido, que se inserem as tentativas de ajuste e reestruturação de economias periféricas como a brasileira.
Todos os instrumentos de política econômica devem manter consistência fiscal intertemporal, e requerem estabilidade prolongada de uma coalizão no poder favorável a "reformas" liberalizantes. Estas são as idéias e os projetos hoje hegemônicos no "Atlântico Norte", qualquer que seja o rótulo: Consenso de Washington, neoliberal ou social-democracia-liberal.
Um dos méritos do artigo "Os moedeiros falsos" de José Luis Fiori, publicado no Mais! em 3 de julho (págs. 6-6 e 7-6), cujos fundamentos econômicos gostaríamos de retornar, foi mostrar que não há associação automática e obrigatória entre essas visões e políticas e o processo de globalização. Diga-se de passagem, para enfrentar a questão de saída, que o processo de globalização é mais intenso na Ásia que em outras partes do mundo e nem as visões neoliberais nem as coalizões políticas correspondem ao "modelo" recomendado pela ideologia dominante.
É importante enunciar que a globalização é uma complicada interdependência monetária, financeira e patrimonial, ao nível internacional, sobreposta de forma assimétrica a uma dinâmica produtiva, comercial e tecnológica. O processo é liderado por grandes empresas e bancos transnacionais, cuja forma de concorrência não tende a integrar as economias e as sociedades nacionais. Os desequilíbrios estruturais dos balanços de pagamento e as deslocalizações rápidas da produção e do emprego são evidências disto.
Por outro lado o Japão, apesar de credor mundial, tecnologicamente avançado e superavitário no comércio, não tem uma moeda que ocupe, como antes a libra e o dólar ainda hoje, o papel de moeda central do mundo. Os Estados Unidos são devedores mundiais, deficitários no comércio e no fisco, e ainda assim possuidores da principal moeda reserva de valor internacional.
Neste cenário, os movimentos de câmbio e de juros não têm reequilibrado os países centrais, mas, pelo contrário imposto instabilidades que atingem até mesmo a "estável" Alemanha, até recentemente a "âncora" da pretendida comunidade européia. A circulação da riqueza financeira internacional está sustentada, em parte, em títulos de dívida pública que, pelos encargos financeiros recorrentes, "eternizam" a crise fiscal dos Estados nacionais, enquanto fortalecem os patrimônios privados.
A globalização possui pois uma dinâmica paradoxal e contraditória, mas nem por isso os Estados dos países centrais abdicam de políticas econômicas nacionais em meio à inescapável tensão entre competição e cooperação. Não se trata de desconhecer que a inserção das economias periféricas nesta "economia global" é inevitável nem tão pouco de imaginar reincursões no nacional-desenvolvimento ou no nacional-populismo. O problema crucial é a estratégia, o cronograma e as políticas concretas desta inserção e não o reconhecimento acaciano de que o mundo mudou.
Qual o programa de estabilização econômica consistente com a retomada do crescimento e com a superação do subdesenvolvimento? Esta é, ou deveria ser, a questão. O momento econômico e político deflagrado pelo Real é instigante desta reflexão.
O Plano Real é em primeiro lugar, um programa de inflação contida, por alguns meses, que visa dar governabilidade até as eleições e impulsionar a candidatura governista. Até aí nada demais, qualquer força política no governo, nesta conjuntura, faria o mesmo.
Em segundo lugar, o Plano Real é um momento de um processo com duas tendências básicas –a dolarização e a nova etapa da internacionalização da economia brasileira. A liberalização comercial e financeira de Collor foi o primeiro ato, o real é o segundo, e o terceiro poderá vir a ocorrer em 1995 com uma eventual vitória da aliança PSDB-PFL-PTB que tentaria consolidar o programa de estabilização em curso, através de reformas já propostas pelo PFL na recente e frustrada reforma constitucional.
Como veremos, a lógica impõe reconhecer que há alta chance de a inflação ficar controlada no curto prazo. Mas, que economia e sociedade teríamos sob a dolarização e a nova internacionalização acelerada a que esta estratégia conduz?
Com o real, no curto prazo, a inflação será contida em função da fixação da taxa cambial e das tarifas públicas, bem como da estabilidade dos salários nominais e da acentuada redução dos custos salariais na indústria. Estas são as principais "âncoras" contra elevações de preços dos bens e serviços.
Há indicações de que as margens de lucro privadas tenham se "ajustado" para cima em grau suficiente para garantir constância, ou até declínio, do nível de preços nos próximos meses. Para tal, as margens de lucro "excedentes" teriam que absorver as pressões salariais setoriais previstas para este semestre. Com tal situação dos preços básicos, os bens e serviços não estarão sob pressão altista.
Inflação contida, entretanto, não é sinônimo de confiança na moeda. Por isso determinou-se a vinculação de reservas internacionais aos reais emitidos, através de lançamento contábil, pelo Banco Central, em conta denominada "lastro monetário" de um montante de divisas equivalentes aos reais da conta "emissão monetária autorizada". Em vez de conversibilidade, uma regra de emissão monetária, teoricamente vinculada à disponibilidade de moeda forte, para gerar confiança no curto prazo.
Os problemas fiscais, cambiais e monetários permanecem, mas são administráveis até o final do ano.
O chamado Fundo Social de Emergência (um nome "sui generis" para designar um fundo de estabilização) assegurou um precário equilíbrio às contas públicas de 1994, embora deva se revelar insuficiente para tanto em 1995. O balanço de pagamentos aguentará o câmbio constante, seja porque a maioria das exportações de 94 já tem câmbio fechado, seja porque as reservas internacionais são mais que suficientes. A elevadíssima taxa de juros pode ser reduzida face ao diferencial em relação às taxas internacionais e à ausência de consumo explosivo. Se elevar-se a confiança, no curto prazo, declinará o temor oficial de migração de ativos financeiros para ativos reais.
Ficam para 1995 os seguintes problemas: taxa de câmbio sobrevalorizada (agravada pela inflação residual em reais); possível inconsistência fiscal intertemporal, em que pesam os encargos financeiros das dívidas interna e externa; crescente desconfiança do real que, não sendo conversível em dólar e com sua paridade ameaçada, revelar-se-á como ficção.
Repor-se-iam então as determinações inflacionárias? A lógica político-econômica dos autores do Plano Real teria as seguintes respostas, a cujas qualificações procederemos:
1) A correção da defasagem cambial em 95 não implicará desconfiança futura do real desde que se efetive a dolarização: ancoragem cambial com conversibilidade e com variação da base monetária atrelada às reservas internacionais.
Esta é a idéia original dos mentores do plano, descartada, temporariamente (?), na medida provisória do real. Isto significa um retorno ao padrão-ouro, à moeda-mercadoria. Face ao descrédito do Estado nacional em sustentar a moeda fiduciária, cria-se a moeda com lastro numa divisa forte. Há variações, desde a rígida Lei de Conversibilidade argentina até o sistema mexicano de câmbio fixo com banda de variação. Em ambos os casos, abdica-se da autonomia na gestão monetária e creditícia e por consequência restringe-se a capacidade pública de coordenar os rumos do desenvolvimento.
2) A consistência fiscal viria, ademais da reforma tributária e previdenciária, através da privatização intensa de setores estratégicos –telecomunicações e energia, entre outros– com o que se organizariam supostamente, via mercado, investimentos que relançariam a economia. Acoplado a isto ter-se-ia que pagar os custos de uma nova e rápida internacionalização da economia em que se redefiniria o perfil da indústria brasileira, abrindo definitivamente à competitividade global.
Entretanto, pondere-se que nada assegura que à privatização se siga a retomada dos investimentos, conforme demonstram as experiências de México e Argentina. Ademais, a gestão fiscal e monetária subsequente pode implicar a necessidade de emissão de nova dívida pública –para controle de liquidez, por exemplo– e de manutenção de altas taxas de juros, com o que o "equilíbrio fiscal" desaparece tendencialmente.
Esta combinação monetária, cambial, creditícia e fiscal não assegura condições para a retomada do investimento privado, nem mesmo o financiamento de políticas compensatórias, não sendo improvável uma trajetória desindustrializante.
Na melhor hipótese teríamos alguns setores, empresas e regiões exitosas, porém incapazes de dinamizar a renda e o emprego nacionais como um todo. Isto é particularmente inquietante no Brasil, país continental, cujo dinamismo potencial ainda se baseia na interação industrial entre a produção de bens intermediários, de capital e de consumo; e não em qualquer versão "moderna" de um modelo primário-exportador de tipo argentino ou chileno, ou numa reconversão industrial apoiada geopoliticamente pelos Estados Unidos, como no caso do México no contexto do Nafta.
A questão central que está posta neste debate não é portanto a de integrar ou não o Brasil ao mundo. O que deve ser discutido é o seguinte: o Plano Real é apenas um programa a curto prazo de controle inflacionário ou é uma opção a longo prazo por uma trajetória em que a internacionalização avança agravando nosso subdesenvolvimento? Será capaz de reordenar interesses internos dinâmicos, ainda que subordinados e associados internacionalmente, em meio ao esfacelamento tendencial da nação –a crise federativa– e dar conta da pobreza de grande parte de seu povo e do crescimento inevitável do desemprego?
Estas são as questões realmente relevantes, e a julgar pelas experiências conhecidas e pelos resultados previsíveis, a resposta é não. Neste sentido o Plano Real não é neutro (nem a curto nem a longo prazo) e portanto representa uma opção por uma forma específica de inserção internacional: a globalização subdesenvolvida.

Texto Anterior: ENTRELINHAS
Próximo Texto: Entenda a polêmica
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.