São Paulo, quinta-feira, 4 de agosto de 1994
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Obras refletem choque do bem e do mal

MARCO CHIARETTI
DO ENVIADO ESPECIAL

Ernesto Sabato é um homem tranquilo, que não gosta muito de dar entrevistas. Sua secretária eletrônica repete uma mensagem gentil, mas seca, onde o escritor lembra que razões pessoais o impedem de atender visitas. Mesmo assim, o escritor concordou em dar uma entrevista à Folha. A conversa foi feita em sua casa, em Santos Lugares, há duas semanas.
Havia dois motivos para esta entrevista. Um deles dizia respeito à sociedade argentina toda. Mais ainda, à humanidade.
A explosão de uma bomba na manhã da segunda-feira, dia 18, na sede da Associação Mutual Israelita-Argentina, a Amia, destruiu o prédio de sete andares e deixou um saldo de 96 mortos e cerca de 30 desaparecidos.
"A impunidade é um dos principais, se não o maior combustível destes assassinos", disse Sabato, no escritório de trabalho de sua casa em Santos Lugares.
"O governo nada fez para descobrir os responsáveis pelo atentado que em 1992 destruiu a embaixada de Israel em Buenos Aires, e de todos os atentados menores que foram cometidos nos últimos anos; agora, ocorre isso."
O homem que presidiu a Conadep, a comissão criada por um governo civil, "sem armas, sem canhões", que com seu relatório (cuja forma final recebeu o nome de 'Nunca Más!') forneceu os subsídios para o julgamento dos líderes da repressão, foi muitas vezes ameaçado por isso, por esta dedicação quase integral "ao homem, que é afinal, o que realmente interessa, a humanidade".
"Por muito tempo senti que me olhavam com ódio, recebia telefonemas, era ameaçado; entendo o doutor Alfonsín, embora não tenha concordado quando ele decidiu enviar dois projetos que de algum modo favoreciam os escalões inferiores da repressão. Na época, escrevi um artigo sobre isso. O presidente acreditava que a democracia estivesse por um fio."
Depois do atentado, depois do choque inicial e da busca dos responsáveis, a cidade se uniu em uma manifestação quase silenciosa contra o terror. Só uma vaia, ao presidente Menem.
"Não pude ir, chovia, fazia muito frio, e o estado de minha mulher não me permite sair muito." Sabato escreveu um ensaio contra o terror, publicado no dia seguinte ao atentado.
Escreveu seu artigo em uma Olivetti elétrica dos anos 60. Há muitos livros espalhados pela casa. No escritório, quase todos eles tratam da arte.
E a arte era o outro tema da conversa. "Pinto há muitos anos, há muito tempo; junto com meus textos, meus quadros me permitem sobreviver. Como acordo muito cedo, na verdade madrugo, à 4h, 4h30 já estou de pé, tenho muito, muito tempo para pensar, para refletir."
Os quadros estão encaixotados, na sala ao lado, no ateliê que Sabato construiu quando a pintura começou a ocupar mais lugar.
Sabato não gosta de entrevistas "objetivas", destas "conversas vazias que alguns jornalistas, que se consideram sabidos em tudo, pretendem ter. Na verdade, neste tipo de conversa, quem pergunta já sabe a resposta".
Uma vez, expulsou, sem muita cortesia, "com dureza mesmo", um jornalista norte-americano da "Life", "que na época, lá pelos anos 60, era uma das mais famosas revistas do mundo", que fora entrevistá-lo.
"O homem entrou, sentou-se neste mesmo escritório, e perguntou-me algo sobre minha obra. Quando comecei a falar, tentando explicar o que queria em poucas palavras, e meio contra minha vontade, até porque não gosto de resumir, tenho medo das simplificações, e o jornalista só estava lá por um pedido pessoal de um amigo meu, quando tentei conversar sobre a história deste país, desta terra, o sujeito me interrompeu, dizendo que estava lá para escrever sobre minha obra, e não para ter uma aula de história. Acho que a entrevista durou 30 segundos."
O escritor não guarda manuscritos e livros. "Olha, não gosto muito de papel, para dizer a verdade, de papel velho e amarelado. Queimo. As telas, os quadros, não, não posso queimá-los." Resultado: aqueles trabalhos que Sabato não "ama" são deixados em um terraço da casa.
"Eu os deixo ali, eles passam anos lá, as tintas vão desaparecendo, sozinhas. O tempo, este movimento inevitável, acaba resolvendo tudo."
E o tempo é um dos tema preferidos de suas conversas. "Sou um homem de idade, e que já viu e ouviu muito; tive tempo, por sorte. Posso falar. Posso falar por exemplo, sobre a história deste país, criado por uma elite iluminada. Este país já foi uma utopia."
Continua sendo? "Às vezes acho que sim; veja o que aconteceu na quinta (a manifestação contra o atentado). As pessoas que estavam lá não eram só judeus, era a gente da rua, a gente que está cansada disso."
Fala pouco sobre seus próprios livros.
Crê em Deus, "mas não este Deus dos católicos, este Deus das igrejas, de qualquer forma".
Não fala sobre a não concessão, pela Academia Sueca, do Nobel de Literatura. Um prêmio não concedido a um país de grande escritores como a Argentina. Que teve neste século Borges e Cortázar, e se dá ao luxo de ter um Sabato e um Bioy Casares.
Em uma entrevista recente disse que lhe haviam contado que para um crítico sueco, presidente da Academia, sua obra literária era pequena. Foram três romances. São três clássicos.
E seus quadros? "Pintei também porque o problema que tenho na vista quase me impediu de escrever; ou melhor, comecei a pintar com mais intensidade, já que a cor, as telas, as formas, tudo isso sempre me atraiu."
Seus temas? "Veja, eu pinto figuras humanas, divididas entre o bem e o mal, como um personagem de Dostoiévsky." como Kafka e outros grandes.
"Nunca entendi por que escrevem o Demônio com 'd' minúsculo; ele é a outra cara do nosso mundo; ou alguém dúvida da existência do demoníaco? Se meus quadros revelam isso? Bom, minha obra é sobre essa divisão, esse choque. Toda ela."(Marco Chiaretti)

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