São Paulo, sexta-feira, 5 de agosto de 1994
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Estados gerais da cultura

SÉRGIO MAMBERTI

"Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é por idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente –dá susto se saber– e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... (...) Viver é muito perigoso...""Grande Sertões: Veredas", João Guimarães Rosa²

É no campo da consciência, da criação, que o mundo se faz ou se desfaz. Cultura é o modo pelo qual os homens criam símbolos, valores, práticas, comportamentos e sentidos –inclusive o sentido do tempo e da estética, da vida e da morte.
É no plano cultural que se encontra a possibilidade maior de superação da barbárie e da conceituação de uma outra ordem democrática, justa e pluralista entre nós.
Cultura é gente, diversa, plural, multifacetada, que na identidade de cada um forma o caldo coletivo que alimenta a história. O que importa é alimentar gente, educar gente, empregar gente. Está aqui, antes de qualquer "arranjo de idéias", o nosso desafio maior.
O desafio de criar um outro Brasil, onde o grito rompa o silêncio e seja capaz de esparramar vida por todos os lados. Um Brasil onde a indigência, a miséria, a exclusão, o analfabetismo, sejam eliminados na lata do lixo da história, junto com a arrogância dos donos do poder.
Onde os brasileiros, enfim, possam comer todos os dias, trabalhar, ganhar salários, usufruir de bens materiais e simbólicos, abraçar seus amigos e reencontrar a dignidade.
Como Riobaldo, sabemos dos perigos que estão na travessia do mundo, nas visões "bem ordenadas", unívocas e cheias de "boa intenção". Mas igualmente sabemos que a vida só acontece na organização, na discussão, na divergência, no construir e reconstruir idéias, vontades, desejos, sonhos.
Um país não muda pela sua economia, nem pela política, nem pela ciência. "Um país só muda pela sua cultura. E a grande obra da cultura é descobrir e reinventar gente" (Betinho).
Redefinir formas de convívio social, explodir as matrizes do pensamento excludente e embrutecedor que sedimenta o secular pacto das elites no Brasil, garantir direitos constitucionais já existentes, criar novos direitos e eliminar privilégios. São esses os compromissos essenciais para uma gestão democrática da Cultura, assumindo o cidadão como prioridade.
Refundar as bases de relações de troca e criação, provocá-las, dar-lhes condições de existência concreta, restabelecer o respeito e o direito.
Contra a implantação de programas unilaterais de cultura, propomos o programa da expressão, da ausência do medo e da crueldade. Transparência e legalidade contra a corrupção e a formação de grupos que se apossam do poder para exercê-lo em causa própria. Assumir o papel do Estado na cultura sem admitir distorções. Dar caminho à produção cultural do cidadão em todas as suas formas, belas artes ou não, em todo o país, sem confundi-la com práticas corporativistas.
Superar a perversa equação Estado versus mercado, a retórica vazia das ilhas de modernidade e a tragédia da maioria sem lugar. Romper com a passividade de décadas de só ouvir e ver. Redescobrir o sentido da ação coletiva, o sentimento do pertencimento, da participação.
Na disseminação das artes e na garantia do acesso de todos aos bens culturais das mais diferentes origens, bem como no resgate de fisionomias e identidades históricas negadas pela ação manipulatória das elites, estarão os alicerces de opções sempre criadoras, capazes de responder aos enormes desafios políticos, econômicos e tecnológicos com que nos defrontamos neste fim de século.
Visando garantir a discussão mais ampla possível das idéias em confronto e assegurar a melhor conceituação de nossas propostas, estamos convocando nacionalmente, através de encontros, todos aqueles dispostos a pensar juntos novas e globalizantes perspectivas para uma política cultural em nosso tempo, fundada na ética, no respeito ao outro e no compromisso de construir um futuro melhor para todos os brasileiros.
Finalmente, é preciso falar de um sentimento que nos fascina e nos impulsiona: o compromisso com a utopia. Não a imagem mítica da abundância dos "países de Cocanha", onde os camponeses esfomeados da Idade Média sonhavam um dia se saciar, mas como tradução de uma esperança, como signo de uma mudança possível e concretizável.
Subversiva por natureza, libertária e emancipadora, a utopia, nas luzes da transgressão, nos mostra o melhor caminho para dissipar o mundo das sombras que ainda aprisiona a cultura em nosso país.

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