São Paulo, sábado, 6 de agosto de 1994
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A pátria perturba os amores dos poetas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Assumindo na novela das oito o título e o espírito de um poema de Vinicius de Moraes, "Pátria Minha", Gilberto Braga nos faz lembrar que o Brasil é um país tão preocupante que nem um poeta que viveu apaixonado pelas mulheres, pela vida boêmia, pela música, conseguia evitar um sentimento de angústia quando pensava na pátria.
Os poetas de países fortes e realizados pensam na pátria, quando pensam, como os filhos de famílias organizadas, estáveis, pensam na mãe, figura doce, discreta e irrepreensível.
Nossa tradição de poesia atormentada pelos desvarios e mau comportamento geral da mãe-pátria vem do jorro central da própria fonte de onde flui o cancioneiro da língua portuguesa. Nunca existiu poeta mais preocupado com a sorte da mãe-pátria do que Camões.
Pessoalmente ele era um mulherengo impenitente e cantava (no antigo sentido de eleger para tema e no atual, de tentar levar para a cama) as suas amadas com um fervor e uma doçura que até hoje ignoram todas as barreiras do tempo e da evolução linguística.
Até hoje ninguém, em língua nenhuma, repetiu melhor, e com palavras mais simples que as dele, uma história bíblica como a de Jacó querendo casar com Raquel: "Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana bela, mas não servia ao pai, servia a ela"... Acresce que Camões, como nosso prezado Vinicius, não era dado a amores platônicos.
Era... "soldado bem disposto,/ manhoso, cavaleiro e namorado,/ a quem amor não dera um só desgosto". Desgosto só quando a moça morria antes de esgotada a paixão e, nesse caso extremo, Camões esperava continuar a gamação no Além: "Roga a Deus, que teus anos encurtou,/ que tão cedo de cá me leve a verte/ quão cedo de meus olhos te levou".
No entanto, quando a pátria entrava em cena era aborrecimento que não acabava mais. Aliás, num verso grave e acusatório, Camões retratou para sempre a calamidade: "O fraco rei fez fraca a forte gente". Quando a pátria, isto é, o rei, o presidente não funciona, não se pode nem namorar em paz.
Camões viveu no seu tempo o desmoronamento do império que imaginava eterno em "Os Lusíadas". Morreu em 1580, quando, devido à derrota de D. Sebastião na África, Portugal passou simplesmente a fazer parte da Espanha. E em D. Sebastião (que o historiador Antonio Sergio chamou, com alguma razão, "pedaço d'asno") Camões depositara suas maiores esperanças de salvação do Reino. E não somente esperanças em prosa e verso.
Lutando no além-mar como soldado e trabalhando como um mouro, ele mandava versos e versos (como o bom filho exilado manda dinheiro para a mãe) para Portugal, mãe pródiga e devassa. Tudo em vão. Morto o poeta, a mãe precisou ser internada na Espanha como alguém é internado num asilo.
Passam os séculos e há versos de Vinicius em "Pátria Minha" que parecem do próprio Camões quando já estava cansado de guerra, doente e pobre, um olho perdido: "Quero rever-te, pátria minha, e para/ rever-te me esqueci de tudo,/ Fui cego, estropiado, surdo, mudo./ Vi minha humilde morte cara a cara,/ rasguei poemas, mulheres, horizontes./ Não te direi o nome, pátria minha,/ teu nome é pátria amada, é patriazinha./ Não rima com mãe gentil./ Vives em mim como uma filha, que és".
Desanimado de regenerar a mãe, o poeta a adota, como filha.
Encontros inesperados
Recebo, quase que ao mesmo tempo, "Com vocês, Antonio Maria" (Paz e Terra) e "O Melhor de Vinicius de Moraes" (Folha). Além das grandes biografias que começam a nos cercar, como a de Vinicius por José Castelo, a de Ary Barroso por Sérgio Cabral, a da bossa nova e de Nelson Rodrigues por Ruy Castro, começam a aparecer os pequenos volumes também.
Está certo. Clássicos têm obras completas, seletas, livros de bolso, suplementos, TV. São encontrados onde menos esperamos. Sabem onde fui encontrar outro dia um eco do "Soneto da Fidelidade", de Vinicius? Na coluna de Joelmir Beting, em "O Globo", onde era citada a seguinte paródia: "Que não seja infinito, porque é grana./ Mas que seja real enquanto dure".
As inquietas gerações brasileiras que vão do fim da República Velha ao fim da ditadura militar foram as que mais tentaram escapar ao jugo materno para criar arte em paz. Não foi possível. Mamãe-pátria andava insone, exigindo atenção, carinho.
O primeiro governo de Vargas, ditatorial, mobilizou vários artistas e pelo menos dois gênios –um na poesia e outro na arquitetura– que nada tinham a ver com regimes autoritários mas precisavam inventar colunas novas para cidades inéditas e decifrar enigmas poéticos que nos desafiavam desde o descobrimento.
Que iam fazer, durante um governo inacabável? Ficar emburrados num canto? Partir para o exílio? Ou simplesmente construir e fazer poesia, dando um exemplo de resignação operosa aos que viriam, mais tarde, tentar criar arte durante uma ditadura pior ainda, que começou em 64 e que ainda nos olha de longe, rancorosa, querendo voltar?
Porque a mãe-pátria não só aceita tudo, todos os senhores, como exige devoção filial. Ela não está sofrendo? Pois os filhos que sofram com ela. Num país como a Inglaterra o poeta T.S. Eliot podia varar duas guerras sem falar em nenhuma delas.
Há, naturalmente, compensações. Nossos artistas, filhos de revoluções goradas e de planos econômicos surreais, uniram, em sua angústia e falta de sossego, música, poesia, crônica de jornal e criaram uma poderosa arte que agora chega às biografias e aos pequenos livros complementares. A crônica, que é uma espécie de baldeação entre o trem expresso do jornalismo e o trem de luxo da poesia, entre nós tem chegado com naturalidade à poesia pura e simples.
O maior de todos os cronistas, Rubem Braga, de quem a mãe-pátria muito exigiu quando ele começou a carreira de jornalista, nos acode com frequência à memória. Como um poeta que a gente sem querer decora. Outro dia, longe de pensar no Braga, estava eu assistindo "Pátria Minha". De repente, Vera Fischer, humilhada em seu orgulho de mulher bonita que foi tratada como mulher fácil, chora e desnuda os seios diante do espelho, como quem pergunta ao espelho se uma mulher assim pode ser tratada daquela forma.
Não pode. Ela continua linda, como quando serviu de metáfora ao eterno reaparecimento da beleza no mundo, numa crônica do velho Braga de setembro de 1980, "Recado de Primavera". Rubem se despede de Vinicius, que morre em julho, antes da primavera. Entre outras notícias dessa primavera que Vinicius não verá, vem essa: "Estive em Blumenau, onde há moitas de azaléias e manacás em flor; e em cada mocinha loira uma esperança de Vera Fischer".
Aliás, o Braga, que é mais poeta nas crônicas do que na poesia propriamente dita, nos deixou um soneto perfeito como uma crônica e no qual há um terceto de grave epicurismo. Dois amantes se amaram à beira do mar. Em seguida: "Andamos em silêncio pela praia,/ nos corpos leves e lavados ia/ o sentimento do prazer cumprido".
O prazer é um dever que temos a cumprir diante de nós mesmos. Enquanto mãe-pátria não vem. Apresentando anos atrás a coletânea das crônicas de Antonio Maria, Paulo Francis evocou assim a amizade que os uniu: "A conversa era mantida num tom premeditadamente superficial, estávamos na segunda metade de 1964, quando as cautelas contra o policialismo do golpe de abril havia cedido lugar a uma profunda depressão. (...) Ao político juntavam-se nossos fracassos pessoais. Não valia a pena falar de uma coisa ou de outra".
O jeito era agir como "o Maria", que, diante do exaustivo sucesso de "Ninguém me Ama", fez paródia a si mesmo: "Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire".

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