São Paulo, domingo, 7 de agosto de 1994
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Gogol e o novo estatuto dos advogados

CAETANO LAGRASTA NETO ; SÔNIA DAS DORES DIONÍSIO

CAETANO LAGRASTA NETO; SÔNIA DAS DORES DIONÍSIO
Elaborar uma nova lei não quer dizer, necessariamente, que estaremos adquirindo uma mentalidade moderna. O péssimo vezo do brasileiro de pensar que, em formulando novas leis, talvez consiga novas almas, lembra-nos Gogol: o Brasil precisa parar de colecionar almas mortas.
Um novo estatuto profissional deve se constituir em documento hábil legalmente, moderno e avançado, voltado para as necessidades sociais com enfoque científico, visando o aprimoramento da classe (por exemplo, incentivando cursos, estágios e reformulando exames de Ordem).
Lavrar-se mais um libelo corporativista apenas demonstra a fragilidade de um segmento profissional e a incapacidade para criar novos mecanismos de defesa da própria sociedade. Neste diapasão, a atitude do procurador-geral da República de questionar apenas um dos incisos do novo Estatuto dos Advogados revela-se, quando nada, falha.
Basta enfocar, para tanto, apenas dois pontos, onde avultam a falta de técnica legislativa e agressões à Constituição Federal.
O artigo 1º, inciso I, da lei 8.906, de 04 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia), afirma ser atividade privativa desta "a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos Juizados Especiais".
Nesse ponto, a lei afronta, dentre outras, a que criou os Juizados Especiais de Pequenas Causas (7244/84), a CLT (artigos 791 e 839 e lei 5.584/70), a Lei de Alimentos (5.478/68), todas, normas de caráter instrumental e absolutamente especiais, sobressaindo nesse passo a ofensa ao artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal (Ação Popular), numa tentativa de garantir o monopólio do mercado, em detrimento do acesso à Justiça e à moralidade administrativa.
Neste conflito entre normas é consagrado o princípio segundo o qual não poderá haver prevalência de norma especial sobre outra, também especial, diante da escala estabelecida pelo artigo 59, da CF/88, uma vez que a lei 8.906/94, além de ser norma de caráter eminentemente estatutária específica, não disciplina integralmente a matéria, quer quanto ao "jus postulandi", quer quanto, especificamente, aos Juizados.
Desta forma, havendo outras que o façam, como mencionado, a nova lei não revoga nem modifica a anterior (artigo 2º, parágrafo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil). Ao pretender ser corolário do princípio constitucional estabelecido no artigo 133, não é demasia observar, com o ministro Orlando Teixeira da Costa, do TST, que esse dispositivo, não objeto de lei reguladora, reserva aos advogados "uma condição de servidor da justiça e não de monopólio, daí decorrendo que o art. 839 da CLT continua em plena vigência" (Rev. LTR nº 53-3/271).
Assim, inexistindo lei que regulamente o citado artigo 133, evidente que a lei de estatuto não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, artigo 5º, inciso XXXV).
Por fim, quando a lei diz "juizados especiais", dirige-se àqueles do artigo 98, inciso I, da CF/88, o que, evidentemente, não inclui os de Pequenas Causas, porque previstos em artigo diverso (artigo 24, X), o que impede qualquer interpretação extensiva.
O segundo ponto refere-se à sustentação oral, "após o voto do relator" (artigo 7º IX), onde, mais uma vez, infringe o legislador ordinário a determinação constitucional, invadindo a competência privativa dos tribunais, conforme dispõe o texto da Carta Magna, na letra "a" do artigo 96, que diz competir aos tribunais dispor sobre o funcionamento dos respectivos órgãos, e repete atitude desastrada da Lei Castilho Cabral (2.970/56), que naquela época, como hoje, em 48 horas, teve declarada a inconstitucionalidade pelo Superior Tribunal Federal.
Estas questões não se coadunam com o disposto no item I, do artigo 44, do próprio estatuto, que diz ser finalidade da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) "defender a Constituição, a ordem jurídica do estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da Justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas".
Será possível desta forma?

CAETANO LAGRASTA NETO, 51, é juiz do 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo.
SÔNIA DAS DORES DIONÍSIO, 37, é juíza do Trabalho Substituta da 4ª Junta de Conciliação e Julgamento de Vitória (ES).

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