São Paulo, domingo, 7 de agosto de 1994
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HART CRANE A POESIA EM TROFÉUS

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma plantação de frutas de sua avó materna, na Isla de los Pinos, em Cuba, fê-lo frequentar e amar os ares e mares do Caribe, que haveriam de inspirar-lhe todo um ciclo de poemas, o conjunto intitulado "Key West", do qual foram extraídos três dos textos aqui divulgados. Vivendo entre Nova York (onde se fixou a partir de 1923) e a Isla de los Pinos (com uma breve incursão pela Europa) Hart Crane nunca superou –segundo seus principais estudiosos– o problema psicológico gerado pelos desentendimentos com o pai, um magnata do açúcar, e pela não-assimilação dos conflitos entre este e sua mãe.
Nesse problema irresolvido estaria a raiz do seu homossexualismo, assim como do alcoolismo desenfreado que, como no caso de Dylan Thomas, acabaria por conduzi-lo à morte prematura, em 1932. Voltava para Nova York, em viagem marítima, vindo da cidade de Vera Cruz, no México, onde estivera por um ano, sob o patrocínio de uma bolsa Guggenheim, com o projeto de escrever um poema sobre Montezuma; no dia 27 de abril, depois de vários episódios de embriaguez, iniciados na noite anterior, atirou-se ao mar, do convés do navio "Orizaba", no Golfo do México, nas proximidades de Havana.
Marcante influência tiveram sobre ele a poesia e a crítica literária de Ezra Pound e de Eliot, e através destes, a poesia de Donne e dos "metafísicos" do barroco inglês. "The Waste Land" ("A Terra Devastada") foi, declaradamente, o desafio que Crane tentou enfrentar no seu mais ambicioso projeto, o poema }The Bridge ("A Ponte"), com o qual pretendeu escrever uma epopéia moderna dos Estados Unidos, com alusões crípticas a um panteão de heróis paradigmáticos da poesia e das artes –Melville, Poe, Emily Dickinson, Whitman, Isadora Duncan– misturados a figuras históricas e míticas, como Cristóvão Colombo e Pocahontas (a lendária princesa pele-vermelha, que teria conseguido salvar a vida de um dos colonizadores ingleses, o capitão John Smith), ou Rip Van Winkle, descendente dos navegadores holandeses, personagem fantástico de um célebre conto de Washington Irving.
Sendo Hart Crane essencialmente um poeta lírico e cultivando uma poesia de índole metafórica, distante das articulações narrativas, não logrou êxito, a meu ver, nesse empreendimento em que Pound e Eliot excederam a todos. Diferentemente de "The Cantos" e "The Waste Land", cujo aparente fragmentarismo se solda numa bem armada colagem construtivista, "The Bridge" –apesar de belos momentos e belos versos– não chega a organizar-se num conjunto estruturado, afigurando-se, antes, um ajuntamento não-coeso de poemas estilisticamente hesitantes entre a modernidade e a tradição.
Por outros motivos, de resto, tanto William Carlos Williams como Louis Zukofsky fracassaram quando, por sua vez, se abalançaram à envergadura épica em "Patterson" e em "A", dois poemas longos que em última análise não passam de diluições politicamente corretas dos "Cantos de Pound..."
Mas talvez a mais congenial influência recebida por Hart Crane, leitor assíduo dos simbolistas franceses, tenha sido a de Rimbaud, poeta com quem apresenta, mais do que qualquer outro, grandes afinidades. O "desregramento de todos os sentidos" poderia ser também o seu lema. Na senda aberta por Rimbaud para os vôos imaginativos do inconsciente e da transracionalidade, se a aventura dadá encontrou na moderna literatura norte-americana uma resposta "sui generis" na obra de Gertrude Stein, pode-se dizer que o espaço do surrealismo –não como dogma, mas enquanto linguagem liberta de amarras lógicas– terá encontrado em Hart Crane um livre-atirador muito peculiar.
Um poeta capaz de preencher o vazio desse movimento na poética moderna norte-americana, mas numa pauta nada ortodoxa, sensível e existencial, um tanto como Lorca, nos extraordinários versos do seu "Poeta en Nueva York" responderia às provocações de sectários menores como Dali e Bu¤uel.
A comparação não é despropositada, até porque esse livro, publicado postumamente em 1940, compreende poemas escritos entre 1929 e 1930, quando Lorca vivia em Nova York como estudante na Universidade de Columbia: entre os seus textos há, inclusive, uma "Ode a Walt Whitman" e um "Noturno da Brooklyn Bridge", temas caros a Hart Crane e a "The Bridge" (1930), poema inspirado na Ponte do Brooklyn, à qual, cinco anos antes, também Maiakóvski prestara a sua homenagem, descrevendo-se a contemplá-la, absorto, "como um esquimó olha para um trem".
Após a morte de Crane, o escritor Waldo Frank reuniu nos "Collected Poems" (1933) os dois livros publicados em vida do poeta –"White Buildings" ("Edifícios Brancos"), de 1926, e "The Bridge", ao lado da "suíte do Caribe" intitulada "Key West" (poemas em sua maioria compostos entre 1926 e 27) e de alguns textos esparsos ou inéditos. Uma edição mais recente, com organização de Mark Simon, feita a partir de rigoroso cotejo de documentos originais e variantes, "Complete Poems of Hart Crane" (1986), vem a ser a coletânea mais abrangente e confiável, incluindo, além das obras publicadas, 70 outros poemas, dos quais 41 não reunidos em livro ou inéditos, e 32 incompletos.
Como Rimbaud, o poeta norte-americano faz uso de terminologia cientifizante, misturada a palavras arcaicas e neologismos. Mescla vocabulário poético e coloquial, o "sermo nobilis" e o "sermo vulgaris" uma gramática ambígua e cheia de idiossincrasias e uma metafórica arrevezada, nem sempre clara na relação de semelhança entre os seus termos e às vezes até mesmo impenetrável. Seus ritmos, aqui e ali instáveis e sincopados, se resolvem frequentemente em versos regulares e rimados, com ênfase nos decassílabos, que clausuram muitos poemas em estrofes e linhas magníficas. Usa e abusa de aliterações, paronomásias e jogos de palavras.
Crane é acima de tudo um poeta de versos estonteantemente belos, que o laconismo da língua inglesa e a combinatória de um cerrado sistema sonoro-metafórico tornam, quase sempre, intraduzíveis. Veja-se o decassílabo:
The silken skilled transmemberment of song
Aqui os adjetivos "silken" (sedoso) e "skilled" ("hábil, sutil") se comutam ou quase-anagramatizam em células sincopadas que materializam a transmutação poética explicitada no desabamento sonoro daquele inter-ecoante "transmemberment" (neologismo: transmembramento) para, logo depois, recaírem no regaço aliterativo ("song") da canção. Não encontro um sistema absoluto de equivalências que permita traduzir esse, no mínimo, "dúctil, sutil transmembramento da canção" com que Crane alude simultaneamente ao mar, ao amor e ao próprio poema.
O mar, e o Caribe em particular, assumem um papel relevante no sistema de metáforas e alegorias que o poeta vincula à sensação de destruição e de morte. Não por acaso Crane escolheu para seu próprio desenlace vital uma "death by water".
Durante muitos anos tive vontade de traduzir "O Carib Isle", mas esbarrava sempre na solução da armadilha verbal que o poeta propõe logo nas primeiras linhas. Cheguei a considerar inviável a tradução criativa desse texto. Mas como em arte só interessa o impossível, não desisti, mesmo depois de vários "false starts". A resposta ao desafio é publicada com este artigo.
Em "O Carib Isle" Crane não se contenta com as muitas aliterações a partir da esplêndida abertura, "The tarantula rattling...". Na verdade, a espinha dorsal do texto, que espelha o "timor mortis" ou quem sabe o contraditório "amor mortis" do poeta numa sucessão de metáforas orgânicas e truculentas, é o jogo verbal anagramático entre "Carib" e "crab" (caranguejo) patenteado nas linhas iniciais da primeira estrofe ("... crabs... which change, subvert and anagramatize your name"). Aliterações binárias, montadas sobre os fonemas "b" e "c", reforçam e complementam essa subversão anagramática do texto.
Sem chegar aos exageros analíticos do último Saussure (quando quis vislumbrar no discurso poético um sistemático subtexto anagramático), é possível detectar, a partir das células iniciais, claros resíduos anagramáticos reverberando em vários passos do poema: "coral beach", "brittle crypt", "brine caked eyes", "clenched beaks", "carbonic", para citar só os casos mais evidentes.
Essa disseminação fonêmico-temática contribui decisivamente para reforçar e solidificar as imagens violentas e agônicas que a desolada paisagem caribenha desencadeia na mente do poeta, sem esquecer a carga semântica que envolve a palavra "Carib" (etimologicamente associável a "canibal" e à idéia de devoração), aqui reforçada pelo seu par anagramático "crab".
Na tradução, ante a inviabilidade de reconstituir esse par com o vocábulo "caranguejo", decidi atuar sobre os substantivos que o qualificam diretamente, chegando, com alguma liberdade semântica, a "CABRIolas" e "(E)sCRIBAs" (ressalto aqui em maiúsculas o anagrama, que pode incluir ou não a vogal "E", colocada entre parênteses).
Na pauta das aliterações em "b" e "c" pratico a disseminação anagramática, especialmente em: "aR(E)Ia BRanCA", "B(E)IRA dos CoRAIs", "CoIAREs BRutos", "CApitão dos doBRões", "BICos em CÃIBRA". Neste último par a palavra "cãibra, só por só, já constitui um anagrama completo ou quase completo. Como no original, a palavra-tema "Carib" explode, ao final, naquele "CARBonlc amulet" da penúltima linha, que, entre "satin" e "Satan", incorpora, capsula e catapulta os signos do Caribe e da morte na linha aliterativa final, "Sere of the sun exploded in the sea." Na solução que adotei, mantenho as aliterações sibilantes e ao mesmo tempo conecto o meu "oceano" com aqueles "cetim" e 'ócio" da antepenúltima linha numa semi-rima paronomástica, que busca contribuir para a explosão sonora final: "Selo de sal que o sol explode no oceano", passando, como convém, do decassílabo ao dodecassílabo (alexandrino, neste caso), para recuperar a quantidade da informação textual do idioma inglês, sempre mais breve.
Segundo John Unterecker, biógrafo de Crane, o poeta presenciou em 1926, na Isla de los Pinos, um furacão que destruiu parcialmente a casa em que ele estava. Um dado que talvez contribua para a compreensão do clima aterrorizante do poema, composto nesse mesmo ano. "Eternity", que alude explicitamente ao evento, e "Hurricane", incluído pelo poeta no conjunto "Key West", foram também criados por essa época. Assim como "The Air Plant" (1927), aqui traduzido, que participa do mesmo clima sinistro e que se destaca pelo imagismo denso, pelas metáforas zoomórficas de coloratura barroca e expressionista.
A dramaticidade que impregna tais poemas os distingue, desde logo, das produções homólogas de Wallace Stevens, cujo primeiro livro, "Harmonium", de 1923, pode ter influenciado Crane com sua refinada linguagem pós-simbolista e abstratizante. Basta comparar as composições do ciclo caribenho com poemas como "Fabliau of Florida", "O Florida, Venereal Soil" ou "Floral Decorations for Bananas" para perceber o quanto a visão patética de Crane se distancia da neutralidade crítica com que Stevens passeia o seu olhar sofisticado e sibilino pela paisagem das ilhas do sul.
Outro poema que me agrada muito, do mesmo ciclo caribenho, é "Imperator Victus", que, através do seu esfíngico minimalismo, me parece uma sutil elegia às civilizações indígenas e pré-colombianas da América, que fascinavam Hart Crane. Fiz a sua tradução há pelo menos 30 anos e agora a divulgo com algumas correções (a nova edição dos "Collected Poems" contém uma estrofe a mais), numa montagem que associa o texto à imagem de uma antiga estátua incaica.

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