São Paulo, segunda-feira, 8 de agosto de 1994
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"Mito" de ex-capitão foi criado pela "repressão" e pela esquerda

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A A FOLHA

"Mito" de ex-capitão foi criado pela "repressão" e pela esquerda
Dividir o mundo entre o bem e o mal é um hábito do passado. Deixo para a antiga esquerda a exaltação de mocinhos e bandidos. Lungaretti me lê como se lesse um manifesto de uma organização oponente, em complô contra ele. Arranca do baú expressões como "patrulhamento ideológico". Desqualifica o historiador Jacob Gorender, e acusa as biografias existentes de "inconfiáveis". Critica o fato de eu ter recorrido a um ex-sargento do DOI-Codi, como se o "outro lado" não tivesse informações a serem consultadas.
Meu interesse pela guerrilha do Vale do Ribeira não está baseado apenas em documentos. A família Paiva tinha uma fazenda, entre Eldorado e Jacupiranga, vizinha ao campo de treinamento da VPR. Duas gerações, a do meu pai e a minha, cresceram na região.
Lamarca cruzou nossas terras. Meu tio Jaime acenou para ele, pouco antes do tiroteio com a Força Pública de Eldorado. Minha tia Nícia pulou o carnaval de 1970 com Lamarca no clube Caraitá. O tiroteio foi a metros da fazenda, ao lado da Escola Jaime Paiva. Lamarca atravessou também o sítio 0K, do meu tio Carlos, e seguiu para Sete Barras, pela ponte construída pelo meu pai.
Após o tiroteio, a fazenda chegou a ser cercada e invadida por soldados da Marinha, que procuravam armas e ligações entre os Paiva e Lamarca. Muitos empregados e amigos da família foram presos e torturados. Meu tio Carlos levou um tiro acidental no pé, em uma das muitas barreiras montadas para cercar Lamarca.
Procuro recontar a história com isenção, enquanto Lungaretti está obcecado pelo cego (e único) compromisso da autodefesa. Tem razão quanto ao exagero do mito. Lamarca, e está no filme, passou mais tempo enclausurado que em combate. Participou ativamente de apenas quatro ações, mas era visto pela população em todos os assaltos. Seu mito foi criado tanto pela esquerda como pela "repressão", que procurava personalizar a luta, colocando no alvo um homem (um "terrorista"), não um ideal.
Lungaretti se preocupa com a tentativa de se "reabilitar Lamarca", e que isso pode ser danoso aos jovens. Quem está tentando reabilitá-lo? Os jovens vão sair atirando por causa do filme? Atirando em quem? Não é o mito Lamarca que criará banhos de sangue. No Brasil atual, o sangue jorra (e continuará jorrando) de presos comuns, de carros-fortes, de disputas por pontos de drogas, de extermínio de menores e de disputas entre garimpeiros e índios. E Arafat está em Jericó, Clinton no poder, Genoíno é chamado de direita do PT, FHC está com ACM, Lula se reúne com empresários, e Quércia cita Médici. E, quem diria, "el comandante" Fidel aposentou a farda.
Se Lungaretti lesse sem tanto ressentimento o que escrevo, perceberia que cheguei a relatar que o ex-capitão mentiu quanto ao fuzilamento do tenente Mendes Jr, e perguntar se era loucura ou ingenuidade montar o campo de treinamento no Vale do Ribeira.
Não sou viúva de Lamarca. Admiro o ex-capitão e muitos jovens brasileiros que, diferente da maioria assustada, largou o conforto da omissão para resistir contra uma ditadura militar. Sou, talvez, órfão de Rubens Paiva, mas viúva de Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Fellini, Leminski, Torquato Neto, do futebol-arte, do amor livre, da irreverência, dos foguetes espaciais, das crenças populares do Brasil rural, dos 111 mortos em Carandiru, dos menores da Candelária e dos mortos pela fome, conflitos de terra e Aids. E estou cansado de tanto rancor.

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