São Paulo, segunda-feira, 8 de agosto de 1994
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Peças de Amilcar dispensam o verbo

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

As 11 esculturas de Amilcar de Castro que o Gabinete de Arte expõe a partir de hoje às 20h levam todo comentário a um limite insuportável: diante delas é melhor se calar a correr o risco do ridículo.
Num poema que escreveu em 1975, o artista mineiro falava da escultura como o primeiro gesto "fundador de um reino onde a palavra é inútil".
A radicalidade das peças de Amilcar de Castro reduz qualquer comentário ao mundo das metáforas. Qualquer tentativa de análise é obrigada a desviar por caminhos tortuosos, comparações, exercícios intelectuais e figuras de linguagem que são fruto de um esforço cuja impotência é, em geral, revelada pela própria obra.
Isso não quer dizer que essas esculturas façam o elogio da ignorância. Muito pelo contrário. Elas produzem um fascínio, e uma inteligência que não pode mais passar pelas palavras. Diante delas, só resta ao espectador se render ao campo magnético que produzem, e à vontade de tocá-las.
As 11 esculturas de ferro têm cinco polegadas de espessura e, embora pequenas se comparadas ao trabalho anterior do artista (em geral, têm cerca de 40cm por 30cm), pesam até 120kg. São como cubos de um brinquedo para crianças amontoados uns sobre os outros, com pequenos deslocamentos, no limite do equilíbrio, por vezes sustentados apenas pelo atrito de sua superfície num plano diagonal e pelo peso.
Brinquedo para crianças mas com um peso inacreditável –e que só é descoberto, não sem surpresa, no momento em que o espectador, como uma criança descobrindo o mundo, toca as peças.
Uma visitante no ateliê do artista em Belo Horizonte chegou a definir essas esculturas como "uma brincadeira dos deuses" –mas que pode ferir a qualquer instante, por descuido no manuseio das peças que resistem pelo peso.
A obra de Amilcar de Castro, 74, mostra a imensa força de um artista que, consagrado hoje como um dos maiores nomes da arte brasileira e um dos principais membros do movimento neoconcreto nos anos 50, não se contenta e acomoda com as próprias realizações, prosseguindo incessantemente na busca de novos limites.
O trabalho anterior do artista, que pode ser visto a partir de quarta-feira na coletiva "Precisão" –reunindo também obras de Eduardo Sued e Waltércio Caldas no Museu de Arte Moderna–, era realizado em geral com grandes placas de ferro cortadas, vergadas ou dobradas.
Apesar das modificações, há uma continuidade de fundo nas passagens da escultura de Amílcar. Todo o projeto do artista busca encontrar a essência das coisas, a escultura como essência, e o trabalho do escultor como um ato fundador, um primeiro gesto. Daí os comentários e as metáforas parecerem pobres e dispensáveis cacoetes diante da presença da obra.
Uma das 11 peças foi realizada como uma maquete, uma miniatura do projeto para um portal de 20 metros de altura à entrada de Ouro Preto. A peça (dois blocos de ferro separados por uma fenda) reforça, de uma outra maneira, o aspecto lúdico da "brincadeira de criança": a escultura como criação de um mundo a partir da composição de formas e volumes.
Fazem parte ainda da exposição no Gabinete de Arte seis "desenhos" (tinta acrílica sobre tela) de grandes proporções. São traços geométricos negros, que procuram na tela um efeito análogo ao do corte no ferro, e pequenas superfícies de cor.
A impossibilidade dos comentários sobre as esculturas de Amilcar curiosamente não produz um sentimento de impotência. Abandonada a palavra, o toque dessas peças provoca uma sensação de enorme potência no espectador, um rejuvenescimento –o que é suficiente para demonstrar a grandeza dessa arte. "Se com um gesto a toco, eu sou tocado", escreveu Amilcar de Castro em um de seus poemas.

Exposição: Amilcar de Castro - esculturas e desenhos
Onde: Gabinete de Arte (r. Artur de Azevedo, 401, Pinheiros, zona sul, tel. 883-6322)
Quando: abertura hoje, às 20h; até 3 de setembro
Visitação: de segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, das 10 às 14h
Exposição: Precisão
Artistas: Amilcar de Castro, Eduardo Sued e Waltércio Caldas
Onde: Museu de Arte Moderna (Parque do Ibirapuera, zona sul, tel. 549-9688)
Quando: abertura quarta-feira; até 25 de setembro

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