São Paulo, segunda-feira, 8 de agosto de 1994
Próximo Texto | Índice

Carta aberta ao Lula

RUTH ESCOBAR

Minha irreverência leviana reproduziu a frase entre filósofos e encanadores que, além de infeliz, é boba
Caro Lula:
A imprensa divulgou uma frase citada por mim, na qual eu perguntava se "é preferível votar num encanador ou em Jean-Paul Sartre." Foi uma frase infeliz como aquela tua entrevista a Ziraldo para a revista "Playboy" a respeito das feministas (irreproduzível, tal a grosseria machista que ela representa).
Não só eu mas todas as feministas já te perdoaram. Você é alguém muito, mas muito acima desses deslizes preconceituosos. Todas temos certeza que um governo Lula seria um governo a favor das justas reivindicações das mulheres.
Tenho certeza também que você não se ofendeu, ao contrário do que fingem virtuosamente alguns de teus partidários e jornalistas. Você, como eu, já deve ter desenvolvido um calo na alma, uma defesa contra todos os estúpidos preconceitos que perseguem os que vêm "de baixo". Tua resposta bem-humorada me divertiu. Você tem razão: é mais fácil viver sem filósofo do que sem encanadores.
A famosa tirada não abriu nenhum discurso; era um papo informal entre mulheres e depois que fiz algumas colocações sobre os motivos pelos quais me afastei da política, minha irreverência, leviana, confesso, não resistiu e reproduziu a frase entre filósofos e encanadores que, além de infeliz, é boba: Jean-Paul Sartre, ao contrário de Fernando Henrique Cardoso que é um grande político, seria um péssimo presidente do Brasil. No máximo serviria para escrever manifestos.
Pior que a manipulação maldosa da brincadeira, só mesmo a ironia machista e discriminadora do jornalista e do seu comentarista. Um homem pode ser gigolô de subúrbio e, no entanto, terá o privilégio de ser batizado como "empresário do setor de serviços".
Operários são operários, líderes sindicais são líderes sindicais, despachante é despachante. Mas mulheres que trabalham, que são empresárias, que são donas-de-casa, estas tornam-se apenas ricas, famosas ou peruas.
Milhões de páginas foram preenchidas para condenar a utilização de uma ex-companheira de Lula pelo então candidato Collor. E, não obstante, ridiculariza-se, sem pudor, um grupo de mulheres empenhadas na participação política e, por tabela, a figura de uma antropóloga que jamais cuidou de atrair, sobre si mesma e seu trabalho, a curiosidade mundana.
Desta vez não votarei em você, se bem que possa voltar a fazê-lo. Minha consciência me diz que Fernando Henrique terá possibilidade de fazer pelo Brasil o que você neste momento histórico não estaria em condições de fazer. Este é o motivo fundamental da minha escolha.
Existem outras secundárias. O PT de São Paulo, meu centro de atuação profisisonal no Brasil, com algumas honrosas exceções, tende a se comportar de forma mesquinha na área de cultura. E não só na área de cultura. Eu vou votar em Luiza Erundina, mulher nordestina e honesta. Mas o governo do PT na cidade de São Paulo, em todas as regionais e secretarias, agiu de forma tão rancorosa que acabou completamente isolado. É algo que eu não gostaria de ver repetido em escala nacional.
O rancor, o moralismo oportunista, o sentimento de encarnar a pureza, enquanto todos os outros são sujos ou suspeitos são arrogâncias que levam ao isolamento político. Como você sabe muito bem, não fui a única a me sentir excluída, muito pelo contrário.
Creio que foi um erro o PT não apoiar Fernando Henrique. Agora é tarde, as escolhas foram feitas e que vença o melhor. Sei, entretanto, que passadas as eleições teremos ainda muito caminho a percorrer juntos. Vamos então colaborar de forma democrática.
Se você vencer terá meu apoio incondicional para tudo o que for bom para a nação e para a cultura. Se eu achar que a ação dos teus partidários for má para o Brasil, você me encontrará na oposição. Esta oposição nunca será pessoal.
Sou filha de mãe solteira, discriminada como imigrante e portuguesa, perseguida pela ditadura militar, várias vezes detida, a primeira em 1969 no 2º Exército e, a última em São Bernardo do Campo em 1º de maio de 1981 e, finalmente condenada à prisão e enquadrada na Lei de Segurança Nacional em 86.
Hoje não suporto mais a política partidária, até porque acredito que mudanças fundamentais vão superar o conceito de partidos e nações em busca de um equilíbrio e ecologia profundos.
Não sou intelectual, não tive a oportunidade de fazer uma faculdade, nem de cursar filosofia. Trabalho desde os 16 anos e me formei por mim mesma e, porque temos tanto em comum, só posso te respeitar como respeito a mim mesma.

Próximo Texto: Lixo hospitalar humano
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.