São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 1994
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O Brasil e a intervenção no Haiti

GEORGES D. LANDAU

Cabe ao Brasil elevar seu perfil na solução da crise haitiana
A opinião pública em geral, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, está desinformada sobre o que realmente vem ocorrendo no Haiti e os antecedentes da atual conjuntura.
A televisão introduz em nossos lares imagens dramáticas de levas de "boat people" que, à razão de mil por dia, preferem arrostar as incertezas do mar em precárias embarcações a morrer de inanição na ilha, quando não vítimas das exações sanguinárias dos "Tontons Macoutes", encorajados pelo regime atual.
O Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizou a invasão do Haiti pelos Estados Unidos. O Brasil absteve-se.
O Haiti converteu-se para os Estados Unidos e o Sistema Interamericano num problema diplomático de primeira grandeza. A perspectiva de uma intervenção militar unilateral norte-americana no Haiti –onde 19 anos de ocupação pelos "marines" (1915-34) não deixaram boas memórias, como tampouco noutros países do Caribe e da América Central que sofreram a mesma intervenção– não pode apetecer nem ao Brasil nem à OEA (Organização dos Estados Americanos).
Daí o empenho dos Estados Unidos em multilateralizar tal intervenção e o convite ao Brasil, recusado, para integrar a força encarregada da sua implementação.
A posição do Itamaraty, de que a violência não justifica a violência, e fiel ao princípio da não-intervenção, honra a tradição diplomática brasileira.
Entende-se a relutância do governo de comprometer um contingente militar com uma causa tão aleatória. Não bastará invadir o Haiti e desalojar do poder o atual regime, corrupto e repressivo.
Após a invasão, será preciso ocupar militarmente o país e assim garantir o regresso do presidente Jean-Bertrand Aristide, que permaneceu dois anos exilado.
Entretanto, será preciso sobretudo assegurar, sob tutela internacional, a reconstrução do país, literalmente devastado. Tal responsabilidade somente poderia incumbir a órgãos multilaterais como a ONU e/ou a OEA, coadjuvados por instituições financeiras como o Banco Mundial e o BID, pois o país depende totalmente de ajuda externa para a sua mera sobrevivência.
Fome sempre houve no país, desde a sua independência em 1804, quando se constituiu a primeira república negra no mundo. O Haiti foi o segundo país das Américas (após os Estados Unidos) a emancipar-se do domínio europeu e desde então vem sofrendo uma espoliação desenfreada, sobretudo por parte da sua própria elite nacional.
A colonização francesa do Haiti foi de tal modo brutal que os escravos insurretos preferiram arrasar tudo a guardar quaisquer vestígios da presença do odiado colonizador.
Seguiram-se dois séculos de subdesenvolvimento progressivo; hoje, o país está economicamente destruído, social e politicamente polarizado, e constitui uma calamidade ecológica.
Sua população de 7 milhões se concentra num território montanhoso e árido (pouco maior que Sergipe); daqui a 15 anos serão 10 milhões de habitantes e não haverá sequer água para abastecê-los, devido ao desmatamento predatório, que fez desaparecer o pouco de solo fértil que restava e secar as nascentes.
Os Estados Unidos se verão confrontados, por volta do ano 2010, com uma segunda Somália, igualmente desértica e esfomeada, mas a apenas mil milhas de Miami.
A comunidade internacional tem ajudado o Haiti, mas somente com paliativos quando são necessárias soluções estruturais.
O Grupo Consultivo convocado pelo Banco Mundial em Paris em julho de 1991, e que reuniu os principais doadores de assistência ao Haiti, resultou em oferecimentos de crédito e cooperação técnica no valor de US$ 0,5 bilhão, quantia significativa em termos absolutos, mas insuficiente quando contrastada com as necessidades básicas do país.
O presidente Aristide foi eleito em dezembro de 1990 e empossado em 6 de fevereiro de 1991 (o então vice-presidente Itamar Franco representou o Brasil na posse).
Destituído, somente sete meses depois, por um motim da soldadesca (e não por um golpe militar clássico na tradição latino-americana), tudo leva a crer que será agora reempossado nos braços de uma força invasora.
Nestas condições, dificilmente poderá governar. Embora eleito no primeiro pleito democrático da história haitiana, realizado sob a supervisão da ONU e presidido por um diploma brasileiro, o embaixador João Augusto de Médicis (hoje em Pequim), Aristide é hoje responsabilizado pelo embargo econômico, imposto pelas Nações Unidas, e que na prática serviu apenas para empobrecer ainda mais a desgraçada população.
O embargo fôra estabelecido a fim de pressionar o general Raoul Cédras a apear do poder e nele restaurar o presidente Aristide, mas fracassou neste objetivo e em nada alterou a posição da oligarquia haitiana.
Esta, mancomunada como sempre com um grupo de militares corruptos, manteve tranquilamente o seu habitual consumo suntuário, insensível à miséria circundante, graças ao contrabando através da fronteira dominiciana.
Assim, Aristide, ex-salesiano expulso da Ordem e que nada tem de democrata, é identificado pelo proletariado urbano de Port-au-Prince com a preservação do embargo, cujos corolários econômico-sociais são a causa imediata da trágica evasão dos "boat people".
Tem o Brasil qualquer papel a desempenhar ante este quadro? O governo tem-se havido com firmeza e comedimento nos foros internacionais em que vem sendo discutida a crise do Haiti, assim como no diálogo com os Estados Unidos.
É possível que à OEA esteja reservado um papel de maior destaque que o que até agora teve na condução do "affaire" haitiano.
Ainda que as Nações Unidas não se tenham até agora distinguido neste contexto, o esforço da comunidade internacional em prol do Haiti deveria colocar-se sob o seu patrocínio e deveria orientar-se no sentido de uma tutela multilateral efetiva, política assim como econômica, guardadas as aparências mas sob total controle externo.
Sob o prisma da estratégia de desenvolvimento sustentável a adotar-se para o Haiti, é óbvio que tanto o BID como o Banco Mundial estariam melhor qualificados que a ONU para gerir o processo, mas no caso haitiano a componente política é tão importante e sensível que melhor seria confiá-la a um organismo também político, desde que a missão específica fosse dirigida por um especialista de alto nível, com livre trânsito tanto no próprio Haiti como entre os países e os organismos doadores (por exemplo a União Européia) da maciça ajuda internacional que se requer.
O Brasil dispõe de enorme receptividade no Haiti. Existem entre os dois povos afinidades subjacentes e é grande a admiração dos haitianos pelo nosso país.
Caberia a este elevar o seu perfil na solução da crise haitiana, em forma proativa, sob o aspecto do desenvolvimento. Temos aqui um considerável acervo de experiências em matéria de desenvolvimento com preservação ambiental e o Brasil poderia disputar a liderança, tanto diplomática como técnica, do processo de redenção econômica do país.
Em 1965 o Brasil, então sob governo militar, enviou uma força armada à República Dominicana. Seria interessante e muito mais consentâneo com a nossa índole nacional se, decorridos 30 anos, o Brasil pudesse, do outro lado da ilha, coordenar o esforço da comunidade internacional para restaurar a dignidade nacional do Haiti e promover, enfim, o bem-estar do seu povo.

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