São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 1994
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Artista foi um dos heróis da descolonização

NELSON AGUILAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Visitei Iberê Camargo em janeiro a fim de consultá-lo sobre a possibilidade de participar da 22ª Bienal Internacional de São Paulo. Expliquei-lhe que não se tratava de convite ou de sala especial, mas de convocação. Enfrentaria de igual para igual, como os demais artistas brasileiros, mesmo os mais jovens, o confronto com as representações internacionais e os convidados.
Iberê manteve o aprumo, teceu uma série de considerações, falou sobre a carreira, mostrou o ateliê, a tela branca enorme à espera de uma disponibilidade física para ser iniciada. Por trás de todos os gestos, transparecia o orgulho luminoso de ingressar para valer, em igualdade de condições, numa Bienal.
Exibiu muitos desenhos, garantindo que o manejo do pulso estava perfeito. Precisava realizar ainda exames médicos para se certificar da motricidade do braço para pintar a grande tela que, qual um monolito, espreitava severamente os visitantes de sua oficina de trabalho.
Tive a certeza de que a tela era o arco de Ulisses, se algum outro tentasse curvá-lo, estaria perdido.
Lembrei a Iberê que não era o crítico que julgava sua pintura, mas sua pintura que julga o crítico. Estava lá para aprender como era possível fazer arte no Brasil sem deixar por um segundo de ser a si próprio.
Deixei Porto Alegre leve.
Nesses dias, escrevi algumas linhas sobre o artista para o catálogo geral da 22ª Bienal. Tomo a liberdade de adiantá-las como homenagem àquele que completaria 80 anos durante a grande mostra.
Iberê Camargo é um signo da arte contemporânea. Sessenta anos de carreira sem se ocupar com injunções nacionalistas ou internacionalistas. Pratica nos anos quarenta com Guignard, artista tão excêntrico quanto ele. Nessa época, realiza telas sem textura, atento sobretudo ao desenho.
Descobre a seguir a matéria como fonte de expressão inexaurível. Dando as costas a tudo, desenvolve sua poética onde a figuração se torna apenas um incidente na malha pictural.
Se colocarmos o quadro em um grande nome da abstração dos anos 50 ao lado de um de Iberê da mesma época, constataremos que a do artista gaúcho permanece aberta, sem resolução, à espera do futuro.
Por este motivo, os jovens pintores formam coro em torno de seu solo. A ironia com que brinda os acontecimentos da cena mundano-artística ("Instalação para mim só elétrica ou sanitária") dá um exemplo de independência cultural que o inclui entre os heróis da descolonização.

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