São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 1994
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Cultura não é nem precisa ser lucrativa

PAULO THIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Cultura tem que dar lucro", é a última panfletagem intelectual neoliberal, em estilo palavra de ordem, que o cineasta Arnaldo Jabor expressou no artigo publicado na Folha em 25 de julho passado.
O articulista incorre em dois equívocos: o pragmático nascido da realidade palpável e o conceitual. Fora a indústria televisiva apoiada por maciços recursos estatais (satélites, investimentos em telecomunicações etc.) no período militar, com seu mercado oligopolizado, e recebendo enormes verbas publicitárias, as atividades culturais no país não estão conseguindo dar lucro.
O chamado mercado de bens culturais no Brasil é restrito e vem se tornando proibitivo para as classes médias. O povão já foi completamente excluído e apenas consome compulsoriamente a TV. A indústria editorial mal se sustenta. O teatro só produz receita com peças de um ou dois atores globais no palco devidamente "patrocinadas" por multinacionais do petróleo.
Tudo bem, mas isto não constitui uma atividade econômica lucrativa: é restritiva e de altíssimo risco. A indústria do disco não vive do que produz aqui, ou seja dos discos e gravações de música brasileira. Em um mercado cartolizado, concentra suas maiores receitas na veiculação de fonogramas importados que chegam neste quintal a custo zero.
Quanto ao cinema Jabor deveria estar mais informado pois é do ramo. Um dos raros sucesso do ano, "A Lista de Schindler" não vai chegar a dois milhões de espectadores, o que multiplicado pelo preço médio do ingresso resulta na renda bruta de US$ 6 milhões, quer dizer uma receita para a distribuidora de US$ 2 milhões, descontados os custos de lançamento a renda líquida de US$ 1,6 milhão.
Se fosse produzido no Brasil, ao seu custo de US$ 35 milhões, o filme colocaria Spielberg na lista dos maiores fracassos de todos os tempos. Comparando-se com o custo médio de um filme brasileiro de boa produção, em torno de um US$ 1,5 milhão, (vide a maioria dos orçamentos registrados no MinC para a Lei do Audiovisual) não haveria qualquer lucro. Isto para ficarmos no único filme de grande bilheteria do ano.
A situação é patética. O sucesso "Lamarca" alcançará a marca dos 130 mil ingressos. Um filme de grande bilheteria nos EUA como "Tombstone", recentemente lançado com mais de 30 cópias no mercado brasileiro, vai atingir cerca de 200 mil espectadores.
Arnaldo Jabor parece ainda navegar no sonho dos anos 70/80, no qual é bom lembrar, o cinema brasileiro era impulsionado por um mercado organizado e controlado por leis de proteção fortes, fontes de financiamento à produção subsidiadas e sem correção monetária, uma distribuidora estatal com recursos e principalmente a presença do povão nas salas, que se evaporou.
Acabou-se o que era doce. A única indústria cultural do mundo que dá lucro (e lucro financeiro, político, marketológico etc.) é a americana, segundo item da balança de exportações dos Estados Unidos. O resto é silêncio.
O equívoco do articulista está no conceito sobre a produção e circulação dos bens culturais. Trata-se de um bem público, como a saúde, a educação e a ciência. Não se destina ao lucro, mas ao aperfeiçoamento do ser humano, ao seu crescimento como cidadão.
Ter se tornado objeto com valor econômico e portanto em tese capaz de gerar lucro é uma perversão do capitalismo moderno. E isso não é papo do velho marxismo superado pela queda do muro de Berlim. É uma constatação objetiva que as grandes obras culturais da humanidade, os bens culturais de alto valor estético não foram criados para dar lucro. Nasceram da inspiração e do trabalho dos produtores culturais voltados para o engrandecimento da arte e do homem.
O valor que pode hoje alcançar um quadro de Van Gogh nos leilões de arte não apaga a morte do seu criador na miséria. Nenhum cineasta que realmente contribuiu para o desenvolvimento da arte cinematográfica mundial, de Eisenstein a Jean-Luc Godard, e no cinema brasileiro de Glauber Rocha a Carlos Reinchenbach, fez sucessos de bilheteria verdadeiramente lucrativos.
Portanto, para democratizar o consumo dos bens culturais pela população, e dar acesso dos cidadãos ao lazer e à fruição da produção cultural, sem o qual o homem se bestializa, cabe ao Estado como representação da sociedade organizada patrocinar, subsidiar, financiar a produção e viabilizar a livre circulação dos bens culturais sem portanto ambicionar lucros.
Quando a cultura não é tratada como bem público e se pensa na eficiência econômica ocorre o que se passou na esquina da minha rua. Lá havia o casarão onde tinha vivido o bruxo do Cosme Velho, aquele que deu status universal a nossa literatura, o mestre Machado de Assis.
Deveria ser transformado em museu, lugar de reverência ao gênio criador. O Estado se ausentou. Foi mais negócio vender a casa e construir um prédio. No térreo funciona uma pizzaria bastante lucrativa.

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