São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Vladimir nas nuvens

RICARDO SEMLER

Deixa um dezinho aí, doutor. Dou um cincão. Os soturnos guardadores já haviam se apoderado das sarjetas através do apoio psicológico dos sacos de lixo.
Depois, é caminhar pelo labirinto psicodélico das lojas que circundam o omni-Mappin, logo de frente para a loja de móveis Playboy.
Um corredor polonês que traz imagens de trombadinhas, que desconfia de cada olhar, que traz à prova da pele o racismo, na medida em que os branquinhos que brilham na noite apertam casacos finos, bolsas e esposas, nesta ordem.
O corredor teria que ser polonês, em homenagem à atração da noite, a Sinfonia Varsóvia. Fico pensando o que as pessoas que olham lúgubres os reflexos das vitrines do magazine achariam de pagar trinta reais para ver um pianista que se chama Viardo.
Escadarias acima, empurram-se sutis os grã-finos. Enfim um concerto honesto. O Brasil, depositário fiel de todos os fins de carreira, ganha até o Colon de Buenos Aires em frequência de espetáculos de segunda, travestidos de finos.
Como aqui interessa mais o disparar dos flashes do que a partitura, o Municipal tem servido para tirar a naftalina dos casacos de pele –se o corpo de baile foi aniquilado, quem afinal se interessa?
Hoje é diferente. Nem me sobem os pelos do braço ao ver o Prefeito e sua entourrage beijoquicante, nem lembro que é ele que mata o pouco que resta da cultura paulistana.
A boa expectativa em relação a esta jovem orquestreta pós-comunista é tanta que conseguiria aceitar um bis composto de três pianistas, duas partituras e sessenta notas fiscais – Maluf, João Carlos Martins e Calim Eid, o Trio Pau-Brasil.
A peruada, céus louvados seja, não gosta de concertos com alto grau de marxistas, e o ambiente é acolhedor, amantes vorazes da música tendo entrado por um real lá em riba, no poleiro.
Piscam as luzes, vai começar na hora, quanta civilidade. O palco dispõe a orquestra pequena, como mandam os parcos recursos poloneses.
Maluf soube retribuir, e coloca ao fundo panos beiges de madeira tortos e mal pintados, combinando com a penúria redecorada que lembra Klaus Kinski entrando no Municipal de Manaus no filme Fitzcarraldo. Pss, pshiu, silêncio.
Uma passada de águas e lá vem Quai Som Felix, o Mendelsohn na Escócia, na trilogia de duas pernas, Hébrides e A Rocha, das quais nos brindam com a primeira, meio piano, meio homem, que se agarra ao topo do teclado como um trapezista sôfrego, tomando fôlego para então encarnar alma de amante.
Vladimir Viardo, russo de nascença e sofrida alma, se derrete em cima dos teclados, faz amor com o piano, tal qual um Drácula imune à luz, fraque absorvendo o banquinho, dedos alvos se fundindo com uma delicadeza que faria o Beethoven se aninhar no caixão.
Uma delgadeza insinuante que faz a platéia sentir o peso da fragilidade, segurando a respiração no segundo movimento, esperando para ouvir o que os dedos do Vladimir tem a dizer em suas frases inertes.
Sentimo-nos invasores de uma relação íntima dos dois, ficamos quietos para que não se perceba nossas mil e seiscentas presenças.
Podemos ir para casa confortados de que, vez em ora, aportam por aqui os verdadeiros amantes secretos da música, que põem a nú os farsantes que tanto tiram dólares deste corredor polonês que dá de frente para a música. Andando em nuvens, nem o tal perigo físico existe mais.

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