São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Só é filósofo quem já morreu, diz Sartre

O pensador critica a abstenção política de Merleau-Ponty
'Se você não faz nada, não tem o direito de me criticar politicamente'
JEAN-PAUL SARTRE
Até o dia 18 de julho
Alberto Nazionale, Piazza Montecitorio
Roma

Meu caro Merleau,
Deixei passar bastante tempo antes de lhe responder: é que hesitei longamente. Também quis discutir o assunto com o Castor (1), que tinha viajado antes de mim. Agora tenho certeza do que quero lhe responder: não posso aceitar a solução que você me propõe. Vou tentar dizer por quê, com toda a amizade. Não se aborreça e me escute.
Você criticou minha posição direta e indiretamente, em conversas comigo e de público. Eu, tudo o que fiz foi me defender. Como se a sua posição fosse justa e eu devesse me justificar por não concordar com ela. Por que agi assim? Porque sou deste jeito: tenho horror de acusar, mesmo para me defender, as pessoas de quem gosto. Mas vou precisar fazê-lo.
Pois a verdadeira resposta que tenho para lhe dar é a seguinte: não aprovo a sua posição e condeno-a. Bem, você vai me compreender: que você se retire da política (enfim, daquilo que nós, intelectuais, chamamos de política), que prefira se consagrar a suas investigações filosóficas, trata-se de um ato a um só tempo legítimo e injustificável. Quero dizer: é legítimo se você não tentar justificá-lo. É legítimo, se não passar de uma decisão subjetiva, que envolve somente a você e pela qual ninguém tem o direito de censurá-lo. E você provará, mesmo, que tinha razão no que lhe diz respeito se o resultado desse retiro for –como espero, acredite, de todo coração– um livro sobre "a prosa do mundo" que seja tão novo e tão rico quanto "A (Fenomenologia da) Percepção", ou "Humanismo e Terror"(2).
No fundo, isto significa falar em vocação. Você toma consciência de que sua vocação é essa, prova-o através de seus livros, e tem razão. Bem. Mas se, em nome desse gesto individual, você discute a atitude daqueles que se conservam no terreno objetivo da política e tentam, dentro dos seus limites, decidir-se com base em motivos objetivamente válidos, você então se torna passível, também você, de uma apreciação objetiva. Deixa de ser aquele que diz: eu faria bem em me abster. Passa a ser aquele que diz aos outros: é preciso abster-se.
Confesso que me incomodou ler no "Express" o resumo de uma conferência sua para estudantes, na qual você dizia de público que eu estava errado. Bem, eu desconto a tradução na linguagem jornalística –e tenho a certeza de que você se referiu a mim com cortesia e na qualidade de amigo. Fique seguro de que não está em causa a minha suscetibilidade. Apenas, constato que as palavras que você pode proferir, senão contra mim, pelo menos contra a minha atitude atual, repercutem imediatamente à direita, e assumem um significado objetivo que não se presta a equívocos. Isso não depende de você: o que quer que diga, por mais fino e delicado que seja o seu procedimento, o resultado será sempre o mesmo: um filósofo erra hoje ao tomar posição sobre o Pacto Atlântico, sobre a política do governo francês, etc., etc.
Ou melhor: ele pode tomar posição desde que nivele e descarte os blocos ou partidos que se opõem, mas não se julgar uma política mais perigosa que outra. Numa palavra: o filósofo hoje não pode tomar uma atitude política. Isso implica, não criticar a minha posição em nome de uma outra, mas tentar neutralizá-la, colocá-la entre parênteses, em nome de uma não-posição. Você pretende que, para poder escolher, é necessário saber em que consiste o regime soviético. Mas, como sempre escolhemos na ignorância, e não nos compete sabê-lo, haveria má-fé em apresentar essa dificuldade de princípio como constituindo uma dificuldade empírica. E além disso, mais importante: não está em discussão entrarmos no Partido Comunista, mas sim reagir, como em nossa consciência pensamos dever fazê-lo, a questões urgentes como, por exemplo, o "exército europeu" (3), a "Guerra da Indochina", etc., etc.
Você me critica por ir longe demais, por me aproximar demais do PC. Não é impossível que neste ponto você esteja certo, e eu errado. Mas a crítica que lhe faço, e que é bem mais severa, é por você abdicar, em circunstâncias nas quais tem de decidir como homem, como francês, como cidadão e como intelectual, valendo-se da filosofia enquanto álibi. Porque você não é filósofo, Merleau, da mesma forma que não o sou, nem Jaspers (ou nenhum outro). Somente é "filósofo" quem já morreu, e foi reduzido pela posteridade a alguns livros. Em vida, somos homens que, entre outras coisas, escrevemos obras de filosofia.
A sua aula no Colégio de França não foi nada convincente, se com ela você pretendia definir o filósofo: neste sentido, faltou dizer tudo. A começar pelo primeiro problema, por essa questão prévia: é possível alguma coisa como a filosofia? (A aula) era admirável se não passasse de um auto-retrato do pintor. E mesmo de uma autojustificação. Mas enfim, a tomá-la assim, ela impedia você de julgar os não-filósofos. Não podia ir além de uma zoologia: a espécie "filósofo" era descrita e fixada (supondo-se que se aceitassem as suas premissas) e avizinhava-se de outras espécies. Entre elas, a comunicação parecia difícil: você tocava no problema no final da exposição, mas, a meu ver, não chegava a tratá-lo. E, se a "presença sonhadora" de que você falou era uma característica acidental, histórica, patológica, ou, ao contrário, uma escolha fundamental.
Essa presença sonhadora eu não reconheço como sendo minha; meu estar-aí..., como dizemos, não é desta espécie. Isto pode significar que não sou filósofo (é esta a minha convicção), ou que há outras maneiras de ser filósofo. Portanto, é absolutamente impossível criticar minha atitude, como você fez na conferência que o "Express" resumiu, em nome dessa pseudo-essência filosófica que, a meu ver, não passa de uma extrapolação de sua própria psicologia e da projeção dela no domínio dos valores e dos princípios.
Minha conclusão: a sua atitude não pode ser exemplar nem defensável; ela é o resultado do puro exercício de seu direito de escolher, para você, o que melhor lhe convenha. Se você tenta criticar quem quer que seja em nome dessa atitude, faz o jogo dos reacionários e do anticomunismo, ponto final.
Não conclua, do que afirmei, que eu não considere minha posição passível de crítica. Com certeza ela é criticável, de todos os pontos de vista: sob a condição de que os pontos de vista sejam, já, políticos, isto é, que traduzam uma tomada de posição objetiva e fundada em motivos objetivos. Um partidário do MRP (4) pode criticar minha avaliação da Guerra da Indochina, um socialista pode criticar minha concepção do Partido Comunista. Mas ninguém tem o direito de fazê-lo em nome da "epoquê" (5) fenomenológica.
O que me incomoda, em você, é que não o vi intervir nem em favor dos Rosenberg nem de Henri Martin (6) nem, no fundo, contra a prisão de comunistas (a sua presença no Comitê de Defesa das Liberdades é sonhadora demais, na verdade, para que possa ser considerada eficaz), nem contra aqueles que desejam internacionalizar a Guerra da Indochina (falo de sua atitude atual, porque antes de sua brusca mudança de 1950 você havia condenado essa guerra com veemência). Ora, em todos estes casos se trata de reações humanas e exigências imediatas. Somente aquele que atende a essas exigências pode, a meu ver, criticar-me em "Temps Modernes", isto é, abrir um diálogo político.
Numa palavra, eu coloco a meu crítico uma questão prévia: e o senhor, o que está fazendo hoje? Se você (Merleau), não faz nada, não tem o direito de criticar politicamente. Tem o direito de escrever o seu livro, isso é tudo. Acredite que afirmo isto sem nenhuma ironia; quero lhe dizer o seguinte: sua escolha, para ser rigorosa, deve limitar-se à pura reflexão sobre a história e a sociedade. Mas você não tem o direito de apostar nos dois lados. E, se quiser minha opinião inteira, é unicamente uma paixão subjetiva que o faz tomar essa atitude contraditória (contraditória porque você quer destruir uma política –a das pessoas que pensam como eu– recusando-se a propor outra). Você quer condenar o mais rápido possível aqueles que poderiam vir a condená-lo.
Não tenho vontade nem direito de condenar sua posição atual, e me disponho a reconhecer que sua atitude e a minha são perfeitamente compatíveis e podem coexistir mesmo hoje em dia. Mas, precisamente por isso, condeno vigorosamente e sem nenhuma hesitação suas tentativas de me condenar. Com toda a certeza não lhes darei acolhida em "Temps Modernes", porque seria agindo assim que eu correria o risco de perturbar meus leitores. Todas as tendências de esquerda serão admitidas na revista; quero dizer, todas as que admitem:
1º) que os problemas políticos se apresentam a todos os homens, e que não é lícito elidi-los, sequer a pretexto de que sejam insolúveis;
2º) todas as que –seja qual for a sua severidade relativamente ao PC– considerem que não é possível segregar um partido que reúne de 5 a 6 milhões de votos.
Estas duas condições me parecem excluir, rigorosamente, a sua atitude atual. Quero lhe fazer notar, por sinal, que minha "mudança" de atitude não trouxe nenhuma mudança na clientela dos "Temps Modernes". Poucas assinaturas novas, nenhum cancelamento de assinatura, renovação normal das antigas. Isto significa, acredito eu, que mudei ao mesmo tempo que nosso público. Você se lembra, ao invés disso, da irritação crescente dos leitores quando você se recusava a tomar partido sobre a Guerra da Coréia? Este ponto de vista também conta: a sua posição pareceria, aos leitores da revista, um passo para trás, um modo de se resguardar: entendo que você queira se justificar: mas eles não estão interessados nisso, parece-me (nem, por sinal, estão interessados em meus próprios motivos); o que querem é que lhes expliquemos a situação a partir dos princípios objetivos que eles pensam ter em comum com a revista.
É o que eu queria lhe dizer. Gostaria que você não visse, nisso, um gesto de pouca amizade (para lhe dizer a verdade, o gesto de pouca amizade foi você quem o cometeu, ao dar aquela conferência contra mim, e sem me prevenir, salvo por sua palavra que deixou cair, negligentemente, em nossa conversa do (café) Procope. É isso o que o Castor chamava "uma indiscreta pequena perfídia". Mas nem em sonhos penso em criticar você por isso). Simplesmente, tudo bem ponderado, parece-me que sua posição não é de molde a poder expressar-se, hoje, nos "Temps Modernes". Você não nos acompanhou em nenhum de nossos esforços (Rosenberg, Henri Martin, Indochina, Liberdades, etc.), por isso não vejo em nome de que você poderia nos criticar, do interior da equipe.
Desejo muito, caro Merleau, que tudo isto fique no terreno ambíguo da política e que você não esqueça, por coisa tão pequena, nossa longa amizade.
Com muita amizade,
J.P. Sartre
P.S. – Minha resposta se refere, evidentemente, ao artigo político. Quanto às notas (7), reservo minha resposta, é claro, porque você não me disse se pretende escrever notas apolíticas, ou escolher esse desvio para introduzir uma "oposição" no interior da revista.

NOTAS
(1) Apelido de Simone de Beauvoir (1908-1986), companheira de Sartre (as notas, salvo indicação em contrário, são do tradutor)
(2) Obras de Merleau, publicadas respectivamente em 1945 e 1947
(3) Proposta de integração dos exércitos da Europa ocidental sob um comando único, derrotada pela soma dos comunistas e gaullistas no Parlamento francês
(4) Movimento Republicano Popular, fundado em 1944: o partido católico, de tendência à direita, que tomou parte em quase todos os governos da Quarta República francesa
(5) (do grego) Colocação (do mundo) entre parênteses; conceito-chave na fenomenologia de Husserl, em quem tanto Sartre quanto Merleau-Ponty se inspiraram
(6) Referência a dois casos importantes na militância dos anos 50: o processo do casal Ethel e Julius Rosenberg, executado nos Estados Unidos em 1953 sob acusação de espionagem atômica em favor da União Soviética, e o do marinheiro Henri Martin, preso na França por distribuir panfletos contra a guerra que seu país travava na Indochina
(7) Notas de cultura que Merleau-Ponty pretendia escrever, com regularidade, na revista "Temps Modernes"
Copyright Arlette Elkaim-Sartre, 1994

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