São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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O arrivista número 1 parodia oportunismo

SÉRGIO AUGUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Houve um tempo em que Sammy Glick era um nome quase tão conhecido quanto Jay Gatsby, George Babbitt e Holden Caulfield. É, como os três ícones literários citados, um personagem paradigmático. Se Gatsby (criado por Scott Fitzgerald) era a quintessência do bilionário de passado nebuloso, Babbitt (invenção de Sinclair Lewis), o supra-sumo do homem de negócios provinciano e reacionário, e Caulfield (o herói de "O Apanhador no Campo de Centeio", de J.D. Salinger), uma espécie de Huckleberry Finn do pós-guerra, há meio século, Glick virou sinônimo de arrivista nos EUA.
Quando o conhecemos, Glick transita na redação de um jornal, cuidando do tráfego de textos para a oficina. Um azougue. "Garoto furão, esperto e ativo", comenta o narrador, Al Manheim, que não se cansa de perguntar, a si próprio e aos demais colegas: "O que faz Sammy correr tanto?"
Para saber a resposta nem é preciso ler "O que Faz Sammy Correr" (lançado agora pela editora Record) até o fim. Atrás do sucesso a qualquer preço, Sammy está sempre correndo para chegar na frente dos outros. Sammy também corre para que ninguém possa perceber a fraude que ele é.
Fraude é apelido. Carreirista em tempo integral, Sammy parece ter nas veias o sangue de Volpone e Lady Macbeth. Passa a perna em qualquer um, na maior cara-de-pau. Em pouco tempo, ascende de continuo a colunista do jornal. Real talento? Nenhum. Mas é um gênio da manipulação, da futrica e do puxa-saquismo. E isso costuma bastar na "rat race" da livre iniciativa.
Com a palavra, outra vez, o velho Manheim:
"(Sammy) aprendera a manipular as mentalidades mais complexas e desconfiadas. Arrancava informações dos melhores e conseguia a maior parte de suas noticias quentes com os piores. Superou sua total falta de habilidade literária inventando um jargão que todos tomavam por um estilo novo e único, quando na verdade não passava de evidente e completa ignorância".
Desonesto, intrometido e arrogante, as custas de um ingênuo aspirante a escritor, de quem rouba um argumento cinematográfico, Sammy acaba em Hollywood, onde enriquece por conta de novos golpes baixos. Eh a partir da chegada de seu protagonista à capital do cinema que o romance de estréia de Budd Schulberg ganha corpo, toma forca e chega ao clímax.
Deu-se a estréia em 1941, no mesmo ano em que "O Último Magnata", o inconcluso romance de Fitzgerald sobre Hollywood, foi publicado, e um ano após Nathanael West ter lançado "O Dia do Gafanhoto". Dos três, o único que realmente fez sucesso foi "O Que Faz Sammy Correr". Contra, naturalmente, as expectativas do editor Bennett Cerf. Escaldado pelo inicial fracasso de vendas de "O Dia do Gafanhoto" –cuja primeira edição não lhe permitiu recuperar os US$ 500 que adiantara a West–, Cerf cunhou um axioma: "Quem lê romances não se interessa por Hollywood e quem vai ao cinema não lê nada".
Depende do romance. Menos obliquo e alusivo do que "O Último Magnata" e menos alegórico e dispersivo do que "O Dia do Gafanhoto", o de Schulberg pegou a comunidade cinematográfica pela proa e não se contentou em chamar a atenção só dos semiletrados.
Dorothy Parker foi um dos muitos críticos que o elogiaram. Dottie conhecia Hollywood na palma da mão e autenticou a fidedignidade do relato. Sempre houve vigaristas como Sammy Glick na indústria de cinema.
Não obstante, os jingoístas mais fanáticos de Hollywood ensarilharam suas armas contra Schulberg, transformado da noite para o dia num reles traidor da classe. Não satisfeito em acusar "O Que Faz Sammy Correr" de ser "uma versão romanceada do "Manifesto Comunista", John Wayne saiu nos tapas com o autor. Louis B. Mayer, que por sinal havia sido sócio do pai de Schulberg (leia texto nesta página), recomendou a deportação do escritor. Para onde? Sugestão de um engraçadinho: para a ilha Catalina, que fica a uns 13 km da costa de Los Angeles.
Na verdade, muitos se identificaram com o protagonista, mas não se aventuraram a enfiar a carapuça num tribunal. Até porque Schulberg evitou as brechas da ficção "a clef". Quando o romance não passava de um conto, o dramaturgo famoso com o qual Sammy cruza no Algonquin, por volta da pág. 35, era ninguém menos que George S. Kaufman. Para evitar qualquer problema, Schulberg optou por chamá-lo de George Opdyke.
Sammy é um compósito, ninguém em particular. Seus modelos mais evidentes são literários. Há nele traços de Jay Gatsby. A exemplo do personagem de Fitzgerald, Sammy pode comprar tudo menos sua entrada na "aristocracia" americana. Sua noiva, Laurette Harrington, é uma variação das coquetes fitzgeraldianas, como Daisy Buchanan, Nicole Warren e Judy Jones. Na noite de núpcias, ela o corneia. Sammy, em suma, é Gatsby com chifre.
Em 1950, nove anos depois de lançar Sammy Glick, Schulberg publicaria outro romance sobre Hollywood, "The Disenchanted" (O desencantado). Um de seus personagens, Victor Milgrim, produtor sem o gosto e a integridade do "último magnata" Monroe Stahr, era um avatar de Sammy Glick: hipócrita, oportunista, leal apenas ao sucesso. Mas seus dois protagonistas tinham melhor biografia: escreviam roteiros e se pareciam muito com Fitzgerald e o próprio Schulberg. Da segunda vez, Schulberg optou pela autobiografia disfarçada.

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