São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994 |
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A era existencialista
MARILENA CHAUI
O terceiro tempo, após a ruptura, corresponde ao restante da obra merleaupontyana (Merleau-Ponty morre em 1961) e, na sartreana (se mencionarmos a imensa produção literária, teatral e política), aos ensaios preparatórios à publicação da "Crítica da Razão Dialética" (anunciada nas cartas com a menção de um livro sobre história, moral e política). Politicamente, situam-se durante a época turbulenta da Quarta República francesa, entre novembro de 1945, primeiro governo de De Gaulle, após a Libertação, e maio de 1958, novo governo de De Gaulle, após a insurreição da Argélia. Marcada pelas lutas anticoloniais (Tunísia, Argélia, Indochina), a época vê o desmantelamento da Action Française, católica fascista, e o crescimento da democracia cristã; e a numerosa presença, no parlamento, ministérios e prefeituras, da esquerda que passa da aliança com De Gaulle (vinda da Resistência) à oposição ao gaullismo. Este é responsável pelo fim da velha direita e o surgimento da moderna, com o conservadorismo liberal, a tecnocracia e o novo patronato. À direita, De Gaulle procura, contra ultraconservadores e comunistas, uma "terceira força", formada com liberais e cristãos; à esquerda, busca-se uma "terceira via", opondo-se ao comunismo, aos católicos de todos os matizes e ao americanismo. No plano internacional, além das crises coloniais francesas, é o momento da discussão e implantação do Plano Marshall e do Pacto Atlântico, da Guerra da Coréia, do macarthismo, da morte de Stálin e subida de Kruschev, com a primeira denúncia pública soviética do stalinismo. Entre 1950 e 1953 (ano das três cartas), teme-se uma terceira guerra mundial, prevalecendo na esquerda não-consumista uma atitude conhecida como "attentisme" –aguardar a retomada do movimento operário revolucionário internacional, o recuo da ameaça de nova guerra, a reabertura de negociações com Ho Chi Min e, sobretudo, a espera de uma mudança na política internacional, reduzida, no momento, a táticas diplomáticas e militares. Proliferam revistas, jornais, livros, debates, conferências, manifestos políticos, formação de grupos de ação, em suma, um conjunto de atividades ligadas à figura emergente do "intelectual engajado" que, à maneira de Voltaire e Zola, participa da vida pública escrevendo, defendendo causas, opinando sobre os acontecimentos, abandonando a torre de marfim da academia e do gabinete. Essa figura está no centro da discussão das cartas de Sartre e Merleau-Ponty, cada um deles possuindo uma concepção diversa do engajamento. Mencionados brevemente nas cartas, vários episódios prepararam a ruptura dos antigos amigos: a exigência de Camus, aceita por Sartre, de que Merleau não compusesse a mesa da assembléia fundadora da Reunião Democrática Revolucionária (RDR), movimento anti-americanista e anticomunista; a conferência de Merleau-Ponty sobre as relações entre filosofia e política; a publicação, nos "Temps Modernes", do primeiro artigo de Sartre da série "Os Comunistas e a Paz", com réplica de Lefort e tréplica de Sartre; a duríssima conversa entre Merleau e Sartre, quando o primeiro anuncia que publicará a conferência e exporá suas divergências com Sartre e a censura que este impõe à publicação de tal artigo (que iria transformar-se no capítulo "Sartre e o ultrabochevismo", de "As Aventuras da Dialética", de MP). O núcleo da desavença é a súbita e inexplicável mudança da posição sartreana, passando do anticomunismo à defesa incondicional dos comunistas, desavença que já se anunciava quando, nos anos precedentes, Merleau-Ponty, diferentemente de Sartre, recusou-se a assinar inúmeros manifestos comunistas e anticomunistas porque, segundo ele, tendiam a reforçar a corrida armamentista da URSS, embora sob a aparência do pacifismo (do lado anticomunista) e da revolução proletária (do lado comunista). Quando e por que Sartre muda de posição? A 28 de abril de 1953, o PCF convoca os operários franceses para uma manifestação contra a guerra da Coréia, no momento da visita do general Ridgway a Paris; para 4 de maio, convoca uma greve geral de repúdio à prisão do secretário geral do partido, Jacques Duclos, ocorrida durante a manifestação de abril. Nas duas ocasiões, os operários não respondem em massa à convocação. A reação de Merleay-Ponty, projetando publicar sua conferência, reforça as idéias que nela desenvolvera, ao analisar a crise atual da idéia de revolução e a degenerescência do liberalismo, indagando sobre a possibilidade de uma nova relação entre filosofia e política. Por que há uma crise da idéia de revolução? Porque substituiu-se a idéia de Marx do desenvolvimento da consciência de classe pela idéia bolchevique de "interesses do partido". Merleau enfatiza a diferença entre Marx e os PCs: enquanto o primeiro exigia uma práxis tecida nas mediações entre a subjetividade proletária e a objetividade das condições materiais históricas, os segundos praticam, a partir do bolchevismo, uma ação identificadora entre ambas, sem mediações. Essa concepção desemboca, afinal, na célebre distinção stalinista entre o "subjetivo" (a intenção pessoal isolada) e o "objetivo" (a ação segundo os interesses do partido), conduzindo à idéia totalitária de "correção subjetiva-com-traição objetiva", ou vice-versa. Na conferência (significativamente anterior à mudança de atitude de Sartre e à publicação de seu artigo), Merleau já assinalava a coincidência entre o pensamento sartreano e a prática comunista, pois, tanto num caso como noutro, estão ausentes da idéia de práxis as mediações exigidas por Marx. A coincidência decorre do fato de que Sartre jamais se dissera marxista –podendo pensar sem a noção de mediações entre o objetivo e o subjetivo– e os comunistas haviam deixado de sê-lo. É essa coincidência, transformada por Sartre em filosofia, que levará Merleau a falar em ultrabolchevismo sartreano. Anticomunista confesso, Sartre, diante da violência cometida contra um comunista, pega da pena e, entre a cólera e a indignação, denuncia o fortalecimento da política reacionária e toma partido, ainda que não ingresse no Partido. Eis porque escreveu a Merleau para avisá-lo de que, doravente, "Les Temps Modernes" admitirá "todas as tendências de esquerda", desde que estas considerem os problemas políticos como postos para todos os homens, não podendo ser escamoteados sob o pretexto de que seriam insolúveis, e considerem que um partido que obtém 5 a 6 milhões de votos, como o PCF, não pode ser excluído nem isolado. Em julho de 1953, escreve: "todo anticomunista é uma criatura desprezível, nada me fará mudar de opinião". Três anos depois, sob o impacto da invasão soviética a Budapeste, escreverá: "jamais será possível reatar relações com os atuais dirigentes do PCF... resultado de 30 anos de mentiras e esclerose... Hoje, volto à oposição". Nas cartas da querela que separará os amigos, Sartre cobra de Merleau-Ponty não se engajar verdadeiramente. Merleau-Ponty cobra de Sartre a entrega a um engajamento às cegas, que o deixa ao sabor dos acontecimentos. Leia o comentário de Marilena Chaui à correspondência Sartre/Merleau-Ponty à pág. 6-11 Texto Anterior: NO CORAÇÃO DA HISTÓRIA Próximo Texto: Entenda a filosofia de Merleau-Ponty Índice |
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