São Paulo, quarta-feira, 17 de agosto de 1994
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Ernesto Sabato expõe suas pinturas no Masp

JANER CRISTALDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Exposição: Ernesto Sabato - Pinturas
Onde: Masp (av. Paulista, 1578)
Quando: abertura hoje, às 19h. Até 7 de setembro

Ernesto Sabato inaugura hoje no Masp uma exposição de sua pintura. Nada demais, fosse apenas pintor. Aos 83 anos e já quase cego, "nuestro vecino" argentino tem uma biografia insólita.
Militante comunista nos anos 30, renega a ideologia marxista em 1934, por ocasião dos primeiros expurgos stalinistas.
Físico nulcear de renome, com estágios em Paris e Massachusetts, em 1935 já pensa também em trocar a ciência pela literatura. Esta decisão só será efetivada em 1948, quando publica seu primeiro romance, "O Túnel". Ou seja, aos 37 anos, o físico nuclear dá um salto no escuro e aposta suas fichas no campo minado da ficção.
Como cidadão, Sabato denunciou as torturas do regime militar argentino, na presidência da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (Conadep). Homem de coragem próxima à insânia, perdeu a liberdade de ir e vir pelas tascas de Buenos Aires, cidade do qual é o cronista mais profundo, e teve a própria vida e a dos seus ameaçada.
Em uma de nossas conversas, em sua acolhedora casa em tantos lugares, perguntei-lhe se jamais tivera medo. "Claro que sim", respondeu. Certa vez, ao ouvir som de sirenes, acordou em pânico na madrugada. Só depois de desperto deu-se conta que não estava na Argentina, mas em uma universidade americana. As sirenes eram de bombeiros.
Hoje, ao final de seus dias, retorna a uma antiga paixão, a pintura. Com uma peculiaridade: o pintor está praticamente cego.
São antigas as relações do escritor argentino com a pintura e a cegueira. Estes dois pólos –luz e trevas– permeiam toda sua obra literária e já estão presentes em "O Túnel", seu primeiro romance. Juan Pablo Castel, o personagem que mata Maria Iribarne, é pintor. A relação entre ambos ocorre a partir de um quadro de Castel, "Maternidade". Allende, o marido de Maria é cego.
No capítulo mais fascinante de "Sobre Heróis e Tumbas", o "Informe sobre Cegos", Sabato cria um personagem, Fernando Vidal Olmos, que se dedica a investigar o universo dos não-videntes.
Perguntei-lhe como havia concebido aquele delírio. "Não sei. Só sei que toquei fundo nas senhoras burguesas. Elas me contam que, depois de ler o 'Informe', não podem ver um cego no metrô sem sentir arrepios."
Neste capítulo, o autor hoje cego narra um episódio ocorrido em Paris, nos anos 30, envolvendo os pintores Oscar Dominguez, espanhol, e Victor Brauner, romeno.
Brauner chegou em Paris em 1927 e uniu-se ao grupo surrealista de André Breton, frequentado por Sabato. Em seus quadros, costumava substituir os olhos por sexos femininos ou aspas de touros. Muitos de seus personagens eram, inteira ou parcialmente, desprovidos de olhos.
Em um auto-retrato de 1931, Brauner –que desde há muito pintava olhos vazados– cria um quadro premonitório: seu olho está perfurado por uma flecha de onde pende a letra D. Brauner volta à Romênia e só retorna a Paris em 1938, para sofrer o que havia pintado há sete anos.
O romeno participa de uma festa no ateliê de Dominguez. A noite era dominada pelo tédio. Brauner vivia com insônia, angustiado e com medo. Dominguez, excitado, começa uma discussão comum dos convivas.
Brauner nada entendia, pois ambos falavam em espanhol. (Ernesto Sabato designa com a inicial "E" este personagem). De repente, empalidecendo e tremendo de cólera, os dois se jogam um sobre o outro. Brauner se precipita sobre E para conter a briga, enquanto outros seguram Dominguez.
O pintor espanhol consegue libertar-se, mas Brauner recebe um golpe e cai. Do chão, vê que os rostos exprimem uma angústia intensa, sem nada entender. Pelo menos até o momento em que Brauner vê no espelho seu olho esquerdo transformado em chaga.
Por muito tempo, em suas fixações ou ensaios, Sabato debruçou-se sobre este episódio, interrogando-se sobre a visão premonitória de Brauner. Hoje, obcecado com o universo dos cegos, é acossado pela cegueira. O acaso não existe, costuma dizer Sabato pela boca de seus personagens.
Em 1979 foi detectada uma grave doença em seus olhos. O oftalmologista lhe proíbe a leitura e a escritura, salvo em quantidades mínimas e empregando sua memória digital.
O escritor, já quase cego, volta então a pintar, precisamente porque está mal de vista. O tamanho de um quadro lhe permite o que não permite a letra. Pergunto a Sabato como influiu em seu ânimo, e mesmo em sua saúde, a nova condição de pintor.
"Maravilhosamente. A pintura é mais liberadora, por isso talvez existam pintores mais longevos que escritores. Marc Chagall não acabava de morrer nunca... Além disso, tem a vantagem de ser algo mais intuitivo e manual. Até o cheiro de terebentina me subjuga. A semicegueira me permitiu a pintura."

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