São Paulo, sexta-feira, 19 de agosto de 1994
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"Ciúme" transporta o amor ao inferno

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Ciúme (L'Enfer)
Produção: França, 1994
Direção: Claude Chabrol
Elenco: Emmanuelle Béart, François Cluzet
Onde: Belas Artes/Sala Villa-Lobos
O ciúme, segundo Chabrol, não é antes de tudo um fenômeno psicológico, nem psiquiátrico. É um desarranjo mecânico, como se pode falar da pane de um motor de automóvel ou algo assim.
Em linhas gerais, a história de "Ciúme - O Inferno do Amor Possessivo" é muito simples. Um jovem hoteleiro, Paul (Cluzet) apaixona-se e se casa com a bela Nelly (Béart). Anos depois, a protocolar (ou quase) amizade entre Nelly e um cliente (dono de uma oficina mecânica, justamente), desencadeia o processo patológico: tudo o que Paul vê e ouve passa a ser objeto, daí por diante, de uma leitura particular. E todos os sinais, conforme essa interpretação, o levam a crer que está sendo traído.
Chabrol –que herdou seu argumento de um filme inacabado de Henry-Georges Clouzot– não descuidou dos aspectos psiquiátricos da questão. Do ponto de vista literário, tentou seguir a idéia de sete círculos do Inferno, conforme a primeira parte de "A Divina Comédia", de Dante Alighieri.
Mas esses aspectos permanecem mais como o que no teatro se chama subtexto: o que deve existir para dar consistência ao texto, mas não deve ser percebido. Simplificando, "Ciúme" tem partes distintas. A primeira, luminosa, sintética, diz respeito ao início da relação do casal. Entre se conhecerem e terem um filho não vai mais de dez minutos.
Na segunda, o tempo ainda é rápido, mas o clima torna-se acentuadamente mais sombrio. Na terceira, o tempo se distende (leva-se vários minutos para representar um tempo objetivamente curto), ao mesmo tempo em que o filme evolui para a comédia.
Para o espectador, é mais fácil dar-se conta da maestria de Chabrol na primeira e segunda partes. Chabrol consegue nos arrancar de um mundo de luz para outro de pura sombra (como Fritz Lang).
A terceira parte, quando se transita para uma situação de comédia (sem abandonar o suspense) é a mais problemática. Primeiro pela mudança de tom (no momento em que o filme parece perder o fio), segundo porque Cluzet responde menos nesse registro.
Contudo, o que Chabrol consegue impor é a idéia de instabilidade. O interesse de "Ciúme" reside na transição de um sentimento corriqueiro, para a loucura.
Chabrol não faz um filme sobre a instabilidade. Inscreve-a no próprio filme, faz dela matéria concreta pelas alterações de ritmo e tom, pelo uso inesperado dos enquadramentos.
Ora, isso acontece num filme em que a evolução é, em princípio, fartamente previsível. Ao estabelecer a imprevisibilidade como elemento da própria encenação, Chabrol acentua a aproximação entre ciúme e um mecanismo que sai dos eixos.
É uma entrada forte, que escapa à visada psicológica e deixa para trás a observação do desarranjo amoroso como maneira de olhar a classe média francesa (o que ocupa boa parte da obra de Chabrol).
O Chabrol de agora, o de "Um Assunto de Mulheres" ou "Madame Bovary", é um mestre que refaz o percurso dos seus clássicos preferidos, dentro de uma narratividade perfeitamente moderna.

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