São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Sociedade sem uma política é utopia

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sociedade sem umapolítica é utopia
"Fera Ferida" se encerra com regeneração social e mesmice política
"Fera ferida" terminou com um juízo bastante curioso sobre o nosso país: a sociedade se regenera, a política continua perversa. Uma novela necessariamente simplifica, até por seu uso de alegorias, nas quais as personagens, reduzidas a tipos ou caracteres, tendem a expressar, cada uma, determinada categoria social.
Mas isto é da lógica do gênero, a meio caminho entre o entretenimento e a arte, e não há o que reclamar. O fato é que a regeneração de Tubiacanga (alegoria do Brasil) passou pela pequena empresa, em especial pela da moça honesta e trabalhadeira (Linda Inês) que, embora filha de político patife, rompe com tudo o que ele representa.
Ao mesmo tempo, contudo, a política continua em péssimas mãos. O prefeito cassado por crimes quer voltar ao poder; o novo prefeito mimetiza os gestos e o discurso de Collor; a Câmara local tem na presidência uma corrupta notória. Mais que isso: o próprio personagem que alegoriza Lula, o lixeiro Fabrício, acaba aceitando ser cooptado, em posição subalterna (a vice-prefeitura), pelo esquema dominante.
Será que assim "Fera Ferida" nos mostra o auto-retrato que a cultura de massas esboça de nosso país? A sociedade, movida pela empresa e pela complexidade das relações sociais –de amizade, vizinhança, fé–, mostra-se capaz de enfrentar suas falhas. Mostra-se capaz, num canto do mundo esquecido da fé e da fidúcia, de Deus e dos bancos (Tubiacanga, no começo, não tinha padre nem agência bancária), de erguer-se da ruína em que foi lançada pelo sonho do ganho fácil e sem trabalho. Uma defesa do capital adquirido pelo trabalho é a conclusão moral da novela. Mas o que nela fica difícil e fraco é a passagem da moral à política.
Em boa parte, este vazio se deve ao próprio fator que deslancha a história: a vingança que o filho do prefeito assassinado vem fazer na cidade que liquidou sua família. Este início, que por sinal é um velho tema folhetinesco (a vingança), quase indispensável em novelas, funcionou bem enquanto se tratava de desmascarar um passado oculto pela hipocrisia dominante.
Mas quando a questão passou a ser o futuro e não mais o passado, entrou em colapso. Não só o apego de Flamel ao ódio juvenil o impedia de assumir uma vida sua, com a mulher amada: o pior é que a redução de sua ação a uma vingança pessoal corroía toda a sua dimensão política.
Um mês antes do fim da novela, esta questão se explicitou, ao ser perguntar a Flamel o que ele queria: justiça ou vingança? Infelizmente, não foi possível "Fera Ferida" passar da cobrança de uma dívida de sangue, de natureza pessoal, para a enunciação de valores universais, no plano do direito e da justiça. Para lembrarmos a grande trilogia de Sófocles, a "Oréstia", ficamos no plano das Erínias, que vingam o sangue derramado, não chegamos ao dos direitos que definem a cidade, a pólis, a política, o Estado.
Na novela, isso se vê na tutela que o rico vingador exerce sobre a própria oposição. Foi Flamel quem montou a chapa vitoriosa nas eleições, obrigando o pastiche de Collor a aceitar a mímese de Lula em sua chapa, com o irrespondível –embora condenável nos planos ético e legal– argumento do dinheiro que daria para a candidatura de ambos.
Nada disto é uma falha da novela. Tudo isso, sem dúvida, foi proposital. O interesse em sublinhar estes fatos reside em mostrar qual é o auto-retrato que, por meio da televisão, a massa de espectadores de novela forma do País. Penso que ele se resume nuns poucos pontos. O primeiro é a insatisfação com um "status quo" que, porém, é visto sobretudo do ponto de vista moral. A ineficiência do serviço público e a prepotência dos ricos aparecem, sobretudo, como corrupção. Contra elas, a honestidade se faz força.
Mas, justamente porque a perspectiva é moralista, fica impossível ir além de uma esquizofrênica regeneração da sociedade. As relações humanas e até as econômicas se conseguem recuperar mediante várias espécies de iniciativas. A coisa pública, porém, continua presa aos velhos padrões de demagogia e corrupção. Mesmo a entrada de novos atores na cena política não altera seu "script".
Longe, porém, de denunciarmos a novela, ou de a criticarmos por não ter uma postura "politicamente correta" (o que quer que signifique este contra-senso, porque a política é o reino em que a divergência é legítima, e por isso não se pode reduzir a uma dicotomia entre certo e errado), "Fera Ferida" vale como sintoma, por revelar uma sensiblidade extremamente forte entre nós.
Os brasileiros vêem sua política como uma dimensão, literalmente, alienada, sobre a qual não têm controle. Contra ela, supervalorizam a moral do esforço e da dedicação –apesar de tudo, apenas uma moral. Imaginam, finalmente, que seja possível conduzir a sociedade sem política: lembremos a utopia, que cintilava nos elogios póstumos a Ayrton Senna, de um País que prosperaria se não tivesse políticos (ou política?). Esta nossa incapacidade de entender a política como o âmbito em que a sociedade adquire e alça a voz pode, ainda, custar-nos caro. É este o caldo de cultura para os regimes de força.

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