São Paulo, segunda-feira, 22 de agosto de 1994
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Democracia há, mas é preciso saber votar

JEB BLOUNT
DO "WASHINGTON POST"

Uma coisa sobre a qual meus amigos brasileiros e estrangeiros concordam é a idéia de que o Brasil não é realmente uma democracia. Devo admitir que desde que cheguei aqui, três anos atrás, tenho me inclinado a concordar com eles.
Quando tantos políticos são desonestos, a polícia defende o seu, os pobres, apesar do voto, continuam na miséria, e os ricos, apesar de seus privilégios, têm medo de andar na rua, é difícil não pensar assim.
Mas agora, observando minha primeira campanha presidencial brasileira, mudei de idéia. O Brasil é uma democracia, e não apenas em princípio. Os erros estão em outra parte e têm muito menos a ver com "o sistema" ou "as elites" do que se pensa.
O problema é, como aquele da seleção brasileira, mais uma questão de "meio-campo". A democracia brasileira sofre de uma terrível falta de criatividade, e a culpa é das próprias pessoas que mais resmungam e se queixam de seu país –os milhões de pessoas que estão com a bola mas não têm idéia do que fazer com ela.
Tudo bem prender, açoitar ou enforcar na árvore mais próxima aqueles que traíram a confiança dos eleitores, mas seria aconselhável lembrar quem os colocou no poder. Na hora das eleições, a falta de vergonha, uma qualidade brasileira tão boa na praia ou durante o Carnaval, não serve.
Botar a culpa no sistema é fácil, mas não é justo. Não se pode culpar nem mesmo a Rede Globo. A Embratel, aquela criação militar que permitiu a fácil censura do seletor único e o adiamento das novelas em favor do horário eleitoral gratuito, é mais poderosa. O horário eleitoral é a verdadeira "Pátria Minha".
Nos Estados Unidos, é preciso pagar pela publicidade política, e os candidatos menores acabam excluídos. Aqui, todos, praticamente até o candidato do PMM (Partido de Mim Mesmo), têm a palavra. Se as pessoas não ouvem, não se pode colocar a culpa na democracia.
Mas o que é que acontece? Apesar de terem opções, milhões de pessoas ficam vagando por aí, como Raí, e se perguntam por que a bola não entra na rede. Começa a busca do salvador da pátria. Seja um Lula, um Fernando Henrique, um Brizola ou Castelo Branco, um Kubitschek, um Vargas ou um Romário, a dependência de figuras desse tipo –um pai para proteger os nenês Fulano ou Fulana– mata a democracia. A responsabilidade pessoal dá lugar à procura por um patrão, e os patrões são arrogantes, vide Vargas ou Romário. Enquanto eles falam à vontade, o toma-lá-dá-cá dos intercâmbios políticos abertos dá lugar a uma estéril e polarizante "democracia de resultados". Pode parecer democracia, mas não tem graça nenhuma.
Mas o que dizer das malignas, maldosas e poderosas elites? Provavelmente não existe maior saco de pancadas na história política brasileira. Todo sistema político precisa de elites. Até mesmo os comunistas têm sua "vanguarda do proletariado".
Como professor universitário, Fernando Henrique é membro da elite intelectual. Lula faz parte da elite sindical. Ganhe quem ganhar, será a pessoa mais "de elite" de todo o Brasil. Votar é, por definição, o ato de escolher uma classe dirigente. O problema não são as elites em si, é escolher as elites certas.
O problema não está na democracia, está no povo. A esquerda, logicamente assustada pela experiência militar, ainda não conseguiu aceitar a necessidade que têm todas as sociedades de alguma espécie de ordem.
Os representantes do centro, como os liberais em toda parte, ainda pensam que uma sociedade melhor espera apenas por leis melhores. Eles são como pessoas que acham que um manual de sexo as ajudará a fazer amor melhor. O Brasil tem um monte de leis. Já cheguei a ler algumas delas, e fiquei chocado em descobrir que a maior parte do que vejo aqui todo dia é ilegal.
A direita –bem, a direita sempre faz boas declarações a respeito de tudo. Mas poucos direitistas brasileiros já me provaram ter disposição real de viver segundo seus princípios supostamente elevados. Alguns deles são honestos, mas é difícil admirar uma pessoa que, como meu vizinho, admite abertamente sentir um prazer especial quando vê o batalhão de choque abrir caminho em meio a uma multidão, brandindo seus cassetetes.
A única mudança estrutural absolutamente necessária é o fim do absurdo sistema de representação proporcional vigente no Brasil. Nesse ponto, a democracia brasileira realmente tropeça. Lá nos Estados Unidos, quando eu tenho um problema eu telefono para meu vereador, deputado estadual ou federal, e eu sei quem eles são, porque eles representam meu bairro, meu distrito ou meu Estado. Se eles pisarem na bola, não terão meu voto da próxima vez. No Brasil, ninguém sabe realmente quem representa quem. É difícil conseguir um policiamento melhor no seu bairro se você tem que ligar para um cara que na realidade trabalha para a CUT ou a Fiesp. Seria muito mais fácil se você simplesmente ligasse para o representante de Ipanema ou dos Jardins.
Mesmo assim, a eleição atual me deixa com um sentimento positivo em relação à democracia brasileira. As opções estão claras e bem definidas, os candidatos são mais ou menos honestos –ou, pelo menos, nunca foram condenados. Ninguém pode dizer que não tem oportunidade de ouvir o que cada candidato tem a oferecer. Os militares estão de volta aos quartéis.
A questão não é se o Brasil é ou não uma democracia. É se o povo a quem ela deve supostamente servir a levará a sério.

Tradução de Clara Allain

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