São Paulo, quinta-feira, 25 de agosto de 1994
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De volta ao passado

OTAVIO FRIAS FILHO

De volta aopassado
A "manobra radical" de FHC nas pesquisas está surpreendendo todo mundo, exceto os poucos que a previam (não me incluo entre eles). Claro que o motivo imediato é o real, mas essa súbita inversão, se perdurar, terá expressado reviravoltas muito mais amplas.
Ainda há pouco fizeram uma segunda versão do festival de Woodstock, emblema universal da contracultura. Os rituais da transgressão foram reencenados como impostura para aparecer, comportadamente, nos telejornais da noite.
A previsibilidade, a repetição mecânica daquilo que há 25 anos era vivo, mostrou o quanto aquela atmosfera, aqueles sentimentos de inconformismo estão liquidados.
Tudo trocou de sinal em muito pouco tempo. A política é a expressão mais visível disso. Gorbatchev foi de direita ou de esquerda? O nacionalismo das frentes de libertação é progressista ou reacionário? A cultura americana é imperialista ou civilizatória? Pinochet é um monstro ou um estadista?
Ao mesmo tempo o atual papado esmagou a teologia da libertação, teorias de concorrência feroz são implantadas em toda parte, o fascismo está de volta, Fidel Castro se tornou uma espécie de Somoza e até Martin Luther King, ficou provado, era plagiário.
No plano dos costumes, a reviravolta se apresenta sob aspecto viral, epidêmico. Os outrora odiosos valores de família, sucesso e consumo renascem, sobretudo entre a população jovem. Sexo livre, fumo e droga estão condenados. O narcisismo assume uma feição cada vez mais frívola.
O pouco que restou dos antigos valores (mas não eram novos?) está cristalizado na mentalidade politicamente correta, antipática e autoritária. A ciência social perdeu prestígio e abordagens humanísticas da mente, como a psicanálise, estão sob assalto da biologia.
Reversão de tal maneira completa talvez só encontre paralelo, no horizonte da história das idéias, na Restauração que se seguiu às guerras napoleônicas, no começo do século passado.
"A Cartuxa de Parma", romance de Stendhal (1783-1842), faz um afresco ideológico daquele período, tão análogo ao nosso, quando a Europa decidiu que tudo voltaria a ser como era antes da Revolução.
Os personagens se movem num ambiente, cínico e voluptuoso, de correria rumo aos valores do passado, como se cada hábito, cada detalhe da antiga ordem devesse ser reinstituído com requintes de perversidade.
FHC nega ter dito a frase "esqueçam o que eu escrevi" e não há, realmente, prova em contrário. A frase entretanto colou porque este é um dos casos em que o sentido ultrapassa a literalidade, a versão fala mais alto que o fato.
Nesta eleição, o ex-contestatário fecha o seu próprio círculo, completa a reviravolta íntima em compasso com o giro do mundo, enquanto parece dizer implicitamente às testemunhas oculares: "Escrevam, por favor, o que eu esqueci".

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