São Paulo, sexta-feira, 26 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Salário, emprego e demagogia

NOENIO SPINOLA

Muitas promessas de campanha foram calibradas para entrar no horário eleitoral ancoradas nas prioridades nacionais segundo as pesquisas de opinião: emprego, saúde, educação, habitação, segurança. Como separar a demagogia da proposta honesta?
Considere esses dados: para cada dólar investido em pesquisa, a Motorola, uma das líderes mundiais na telefonia celular, obtém um retorno de US$ 33. Cada empregado gasta pelo menos 5% do tempo em treinamento ou educação. Há estudos que sugerem até 20% para a reeducação no trabalho.
É fácil, portanto, aplicar um detector de mentiras nas campanhas, considerando o previsível coquetel de ilusões que será oferecido para gerar empregos. A educação deixou de ser apenas um fenômeno escolar para funcionar em linha contínua, do treinamento à reciclagem constante da mão-de-obra. Com o encurtamento dos ciclos tecnológicos, renovados a cada cinco anos, o Estado deixou de pagar sozinho a conta.
Há, porém, outra questão importante quando se trata de emprego e salário: a competição global. Radicais franceses, por exemplo, podem atribuir a taxa de 25% de desemprego entre os jovens de seu pais às importações da Malásia. Ou do Brasil. Os estudos de Paul Krugman ("Peddling Prosperity" – Norton 1994) mapeiam essa polêmica.
Krugman arrasa os argumentos levantados na Conferência de Davos e no Livro Branco da Comissão Econômica Européia (CEE), divulgado no fim do ano passado.
Em Davos e na CEE o ponto é o mesmo: a mão-de-obra barata favorece as exportações dos países pobres e os industrializados não podem competir porque pagam salários e benefícios sociais muito mais altos.
Para destruir teses protecionistas como as de Jacques Delors (CEE) e Klaus Schwab (Forum Econômico Mundial de Davos), Krugman usa simulações simples e estatísticas sobre comércio e poupança: em 1993, ano do pico dos investimentos estrangeiros nas economias emergentes, o fluxo de capital chegou a US$ 100 bilhões.
No mesmo ano, o Produto Interno Bruto dos países ricos elevou-se a mais de US$ 18 trilhões. Como atribuir o desemprego dos ricos ao modesto volume aplicado na periferia?
Para que sejam politicamente maduras e estrategicamente consistentes, as propostas dos candidatos terão de colocar a questão do emprego e salário no Brasil em um contexto global. Quando se globalizam os problemas, entram no jogo os juros, transportes, tecnologia e vantagens geográficas comparadas.
Só considerando tudo isso os candidatos evitarão fazer gol contra durante o pique das campanhas salariais de setembro. Se escorregarem na retórica, darão armas e munições ao racismo e ao ultranacionalismo emergente em países europeus e de outras partes do mundo, onde há líderes doidos para taxar importações, jogando a culpa pelo desemprego nos países com níveis de renda "per capita" mais baixos.
A comparação dos ganhos dos aposentados argentinos com os brasileiros quase introduziu a agenda de Davos e da CEE no Mercosul. É muito mais provável que o crescimento do comércio exterior gere aumentos globais de renda, do que empobrecimento seletivo, exceto no caso de concorrência desleal.
As campanhas que prometem empregos seriam mais consistentes se considerassem, ao mesmo tempo, certas distorções internas. O que adianta fazer discursos defendendo o poder de compra da cesta básica no ABC, esquecendo que para colocar em São Paulo uma saca de milho produzida em Rondônia gasta-se o equivalente a outra saca de milho? Ou ignorando a taxação que reduz a capacidade competitiva dos mercados futuros brasileiros?
Muitas plataformas entusiasmadas com a agricultura ignoram até que o valor adicionado a certas matérias-primas da porteira da fazenda para fora chega a 90% do preço final pago pelo consumidor. Como o Brasil se viciou nos últimos anos em uma cultura de curtíssimo prazo, é difícil propor ou montar estratégias de longo prazo para atuar na complexa cadeia da produção.
Mesmo assim, vale a pena tentar, desde que haja lideranças políticas capazes de sofisticar um pouco mais os fluxos financeiros.

Texto Anterior: Mercosul, integração ou desindustrialização
Próximo Texto: Paulistano paga menos 0,22% no custo médio da cesta básica
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.