São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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Vai dar bolo no piquete

RICARDO SEMLER

Está para se reabrir a temporada de caça. Depois de mui tenebroso inverno, o trabalhismo brasileiro deve voltar ao cenário. Afinal, as empresas brincaram de reengenharia mas de fundamental só fizeram mesmo foi enxugar, dentro do que os americanos chamam de "downsizing" –redução de tamanho. Como havia gordura pra tudo que é lado, até que foi fácil, apesar de doloroso.
Mas o peso para os que restaram aumentou, e a essência das estruturas ineficientes não foi alterada por completo. Com a retomada do mercado, as esperadas decolagens de produtividade acontecerão por apenas um curto espaço. O enfoque maior foi na diminuição de pessoas, e não na diminuição de tarefas.
Por outro lado, temos uma perspectiva de crescimento, até de "boom" econômico. Poderemos ter seis ou oito anos de condições favoráveis.
O Fernando Henrique poderá ser o presidente mais preparado das últimas décadas. Isto inspirará forte confiança internacional, trazendo novos recordes de investimento ao país.
A América Latina, que já vem dando sinais de realismo e abertura, carece de uma recuperação do Brasil, para então surgir como uma das áreas promissoras do globo.
Mas junto vem greve. O sindicalismo brasileiro foi baleado pela profunda recessão dos últimos anos e começa a se remexer, ainda em estado de coma latente. Quem, afinal, pode reclamar salário e condições de trabalho de empresários que estão loucos por uma grevinha?
Os mais ingênuos proclamam o fim do sindicalismo forte, alegando o enterro do marxismo e o exemplo de sociedades pouco sindicalizadas, como os EUA. Ledo engano. O Brasil está muito mais para uma Itália, uma Espanha ou uma França.
Aliás, o perfil do Fernando Henrique é mesmo de um Mitterrand ou de um Felipe González. Isso implica tentativas de acertos e até cooptação das bases sindicais –daí a especulação de Lula ministro.
É improvável que o PT aceite ser parte silenciosa de uma grande coalizão nacional. Seria muito mais de seu feitio manter a independência total, apoiar os projetos com os quais concorda, mas semear sua futura sorte política através da base trabalhista. Em outras palavras, recompondo as perdas, tanto de salários quanto de condições de trabalho, que ocorreram nestes últimos dez anos.
Quando digo perdas, não me refiro a uma simples conta de salários, absolutos ou relativos. Quero dizer perdas de oportunidades de melhoria de vida.
Os ganhos obtidos pelas empresas não foram repassados substancialmente aos trabalhadores ou mesmo aos consumidores. Boa parte começa a aparecer nos balanços gordos que pipocarão pelos jornais. Em relação a esta vasta melhoria é que os trabalhadores terão margem de manobra.
Como o empresário brasileiro não exercitou sua capacidade de diálogo, mas apenas de discurso, tendo adotado posturas teoricamente modernas mas sem melhorar de forma estrutural sua relação com os empregados, vai dar pau.
O sindicalismo vai voltar a ser fator, e as empresas serão pegas de surpresa.
Vem pela frente uma era de redistribuição delicada de renda e, junto com as melhorias gerais, virão movimentações bem orquestradas.
Com todo o direito, já que o famoso bolo imbecil do Delfim precisa ser cortado em pedaços, e ninguém estará de acordo com o tamanho de sua fatia. Vai ser fascinante. Garfo e faca na mão, minha gente.

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