São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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A queda de Maradona

SÍLVIO LANCELLOTTI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma suspensão de 15 meses para Diego Armando Maradona. Sem direito a apelação.
Agora Maradona só poderá retornar aos gramados em 30 de setembro de 1995. Terá de idade, então, exatos 34 anos e 11 meses.
Vai terminar no seu momento mais subterrâneo, mais dramático e mais patético a carreira polêmica e controvertida do maior futebolista da história da Argentina. Paralelamente, a Fifa também puniu com a mesma suspensão o dietólogo e nutricionista Mário Daniel Cerrini, que forneceu ao jogador os produtos proibidos pelas regras do antidoping no esporte.
Por que razão, no entanto, a entidade foi brandíssima com a AFA, a federação platina, meramente repreendida, via carta, pela inclusão de Cerrino na sua delegação? A reconstrução minuciosa dos episódios que envolveram Maradona, desde a sua reconvocação para a seleção da Argentina, fornece algumas das respostas.

Setembro de 1993. Uma rural Mercedes Benz, na cor bordô, trafegava com cinco homens pelas ruas de Rosário, uma cidade localizada a noroeste de Buenos Aires, cerca de 250 km da capital.
Na direção estava Jorge Santecchia, apelidado "Rulo", um ex-volante do Estudiantes, grande amigo do proprietário do veículo, Diego Armando Maradona.
Ao lado de "Rulo", no banco da frente, seguia Júlio Marcos Franchi, procurador do atleta.
Maradona ia atrás com outros dois homens, emissários de uma empresa patrocinadora da Copa de 94 nos EUA. Tema da conversação ambulante: a volta de Maradona à seleção da Argentina e a sua participação no Mundial.
Para os emissários, a Copa não teria sucesso sem a presença de um astro consagrado. Por isso, se dispunham a investir pesado na recuperação física de Maradona.
O jogador gostou da idéia, mas argumentou contra. Afinal, Júlio Humberto Grondona, o presidente da AFA, jamais permitiria a sua reconvocação. O técnico do time, Alfio "Coco" Basile, também não se esforçaria para enfrentar a oposição da cartolagem.
Além disso, Maradona havia brigado com alguns dos principais líderes da seleção de Basile, como o volante Redondo e o capitão Ruggeri. O assunto acabou morrendo no passeio da rural.
Alguns meses depois, no dia 1º de fevereiro, exausta com as ausências de Maradona em treinos e jogos do clube, a direção do Newell's retirou-o de seu elenco.
Tenso com a punição, Maradona se refugiou na sua casa de campo de Moreno, 80 km a oeste de Buenos Aires. Obviamente, em poucas horas dezenas de jornalistas cercavam a casa.
Um fotógrafo se aproximou do portão e explodiu o seu flash. Enfurecido, Maradona entrou na casa, à procura de um rifle de ar comprimido, capaz de atirar 15 chumbinhos em sequência.
Com a arma apoiada na rural, o craque apontou nos jornalistas. Cinco deles foram atingidos.
Naquele momento o procurador Franchi concluiu que Maradona necessitava bem mais do que uma ajuda psicológica normal.
Com o apoio dos pais do jogador, Diego e Tota, da esposa Cláudia Villafane e do fisicultor Fernando Signorini, o procurador iniciou um profundo e paciente trabalho de bastidores.
Sem a bola, Maradona engordava, exacerbava a sua irritação. De alguma forma o astro precisaria voltar aos campos e à seleção.
Para impor ao seu projeto a indispensável seriedade científica, Franchi procurou Néstor Alberto Lentini, da secretaria dos Esportes do governo da Argentina.
Corria o mês de março de 94. Sem que ninguém soubesse, nem mesmo o jogador, Franchi se reuniu com Lentini e com Signorini e solicitou um plano de conduta.
Signorini, por sua vez, pediu ajuda ao professor Antonio Dal Monte, diretor do Instituto de Ciências do Esporte da Itália –que já desenhara a preparação de Maradona aos torneios do México/86 e da Itália/90.
Lentini fez uma única exigência: submeteria Maradona, periodicamente, aos mesmos testes de controle antidoping da Fifa. No primeiro traço de substância proibida, desistiria da missão.
Restava só convencer o astro.
No final do mês, a seleção da Argentina viajou até Recife para enfrentar o time do Brasil num amistoso. Estimulado por Franchi, Maradona pediu a Basile que o incluísse na delegação.
Quem viu a peleja, Brasil 2 x 0, certamente se impressionou com as imagens deprimentes de um Maradona barrigudo e frouxo no banco de reservas.
O semanário "El Gráfico", o mais importante da nação platina, tratou o craque com rudeza: "Maradona rifou outra semana". A cartolagem da AFA delirou com a humilhação pública do astro.
Ironicamente, porém, as críticas da imprensa da Argentina só serviram para reanimar o jogador.
No dia 25 de março, Maradona comunicou a Franchi que se dispunha a fazer um vigoroso regime de emagrecimento. Feliz, Franchi levou o craque a Lentini.
Imediatamente, Lentini produziu uma completa avaliação do estado físico do astro. A constatação foi terrível. Maradona atravessava um momento físico lastimável.
Faltavam menos de 90 dias para a estréia da Argentina no Mundial.
Signorini encontrou parte da solução. Maradona se alojaria numa clínica em Santa Ros, 500 km a sudoeste de Buenos Aires, para uma semana de super-esforços.
Ao mesmo tempo, os tais emissários de um patrocinador da Copa ressurgiram com uma nova proposta de apoio –um produto infalível, comercializado livremente nos EUA, sem a necessidade de receita médica, ajudaria o craque a perder peso muito depressa.
Maradona se assustou com a sugestão. Não pretendia correr nenhum risco nos testes antidoping. Antes da Copa, para não perder o apoio de Lentini. Durante o torneio, para não se transformar na vítima de um novo escândalo.
Os emissários, todavia, tranquilizaram o jogador. Tratava-se de um produto sem contra-indicação, de nome Universal Ripped Fast.
Lentini examinou o produto e comprovou a sua inocuidade.
Além disso, informalmente, os emissários do patrocinador asseguraram a Maradona que ele seria protegido dos perigos do doping.
Sossegado, Maradona começou a ingerir o Ripped Fast.
Em Santa Rosa, o craque se submeteu aos maiores sacrifícios de sua existência.
Acordava cedo e, sob o comando de Signorini, realizava uma hora de trabalho aeróbico. Almoçava vegetais, bebia chimarrão, descansava outra hora e então se entregava a uma corrida de 8 km numa esteira rolante de US$ 9.300.
Para relaxar, ainda fazia três rounds de boxe com um antigo pugilista, Miguel Angel Campanino.
A natação também participava da rotina de Maradona. E o jogador não tirava do pulso um relógio especialíssimo, El Uniq Cic Pro Trainer, controlador permanente da sua frequência cardíaca e das suas alterações de pressão.
Com Lentini e Signorini, alguns outros personagens compunham o time de acompanhantes do jogador, entre eles Mário Cerrini.
Dono de uma academia, nutricionista amador, filho de uma vedete da noite portenha, fora indicado a Maradona pelo presidente da Argentina, Carlos Menem. Anos antes, Cerrini se incumbira, com sucesso, de um programa de emagrecimento da então mulher do presidente, Zulema Menem.
Lentini não gostou da inclusão de Cerrini. Como, porém, detinha o controle do cotidiano do jogador, do seu acordar ao seu dormir, preferiu não pedir seu corte.
Maradona queimou 14 kg até a oficialização da lista dos 22 inscritos pela Argentina no Mundial.
O presidente Grondona, porém, até o último instante tentou impedir a sua chamada. Grondona não queria atritos com a Fifa ou com o brasileiro João Havelange, seu presidente, ou com o suíço Joseph Blatter, seu secretário-geral, a quem o jogador chamara de "hijos de puta", ostensivamente, via satélite, na cerimônia de encerramento da Copa de 90, em Roma.
Na verdade, Grondona não queria nem Basile como o técnico da seleção. Era o seu preferido, desde 90, o ex-capitão Daniel Passarella.
Mas Grondona acabou engolindo Basile. Em troca, o técnico acabou engolindo quase toda a comissão técnica de seu antecessor.
Apenas um homem se rebelou contra a trama de bastidores, o médico Raúl Madeo, que abandonou a seleção. Ficou com o seu cargo Ernesto Ugalde, a quem Maradona não suportava.
Basile, por sua vez, também não queria Maradona. Na verdade, não queria conviver com o personalismo de Maradona. Admirava o jogador, mas se aborrecia com o homem e suas malucas exigências.
O futebol medíocre da seleção nos combates preparatórios, porém, gritou mais alto. Com a exceção de "El Gráfico", quase toda a imprensa platina passou a pedir por Maradona.
A torcida, claro, idem, sonhava com a volta de seu ídolo. E Grondona e Basile acabaram engolindo Maradona e sua trupe.
Afortunadamente, na fase de treinamentos para o Mundial, Maradona se mostrou um homem e um atleta exemplar.

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