São Paulo, segunda-feira, 29 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Alta periculosidade

RAUL CUTAIT; ROBERTO IUNES

RAUL CUTAIT e ROBERTO IUNES
Quaisquer que sejam os resultados das próximas eleições, uma coisa é certa: o país precisa e exige amplas reformas sociais. Felizmente, já existe uma nova consciência nacional, que anseia por melhores condições de vida para a população em geral e, em especial, para aquele segmento que vive em situação subumana, sem direito a emprego, comida, casa, saúde e educação.
Essa ampla conscientização traz, de maneira indubitável, o necessário respaldo popular para que os futuros governantes desencadeiem as mudanças estruturais e conjunturais cabíveis.
É óbvio que não se muda a atual configuração social do país do dia para a noite, nem de um governo para outro. Contudo, é fundamental que se tenha em mente que esse processo depende de uma ferrenha vontade política, imprescindível para o planejamento e execução das mudanças desejadas.
Mais ainda, é esse firme posicionamento que dará aos futuros governantes condições para definir, de maneira não só política mas também técnica, os critérios de priorização das ações, uma vez que o nosso PIB é insuficiente para atender a todas as demandas, mesmo aquelas de ordem social.
Caberá a eles administrar as pressões daqueles que colocam interesses pessoais acima dos públicos, seja para a obtenção de dividendos políticos, seja para finalidades espúrias.
Dentro dessa política, é importante reconhecer a existência de um importante e nem sempre transponível obstáculo, que pode abalar os melhores projetos e aquebrantar as mais firmes convicções políticas: o financiamento.
O que se tem vivenciado nos últimos anos é uma situação de alta periculosidade. Vejamos alguns exemplos:
a) apenas cerca de 3% do PIB são destinados pelas três esferas de governo a esse setor, o que inviabiliza o preceito constitucional de que saúde é um dever do Estado;
b) não raro, os parcos recursos públicos disponíveis têm sido desviados para outras finalidades ou setores;
c) o pagamento dos serviços prestados ao SUS (Sistema Unificado de Saúde) é feito com meses de atraso, sem juros ou mesmo correção monetária, configurando um verdadeiro calote, para usar a expressão empregada recentemente pelo ministro da Saúde;
d) segundo elementos expressivos do próprio Ministério da Saúde, a corrupção e o desperdício são responsáveis por perdas de 40% dos recursos destinados à assistência médica;
e) segundo denúncias do governo de São Paulo, os recursos para pagar o atendimento do SUS no Estado foram reduzidos em 33%.
Está mais do que na hora de se dar à saúde a atenção que ela merece, contemplando-a com uma fatia do Orçamento condizente com as necessidades.
Os US$ 57,00 per capita gastos no ano passado pelo governo federal, ou mesmo os US$ 73,00 estimados para o corrente ano, são absolutamente insuficientes: não permitem a execução adequada das ações de saúde, inviabilizam a manutenção de um sistema público de atendimento médico digno e não possibilitam que se invista de maneira marcante numa política de prevenção das doenças, com suas benéficas repercussões a médio e longo prazo.
Portanto, se por um lado é altamente desejável que a dotação orçamentária para a saúde seja aumentada e que novas fontes de financiamento sejam incorporadas às já existentes, por outro lado não se pode permitir a persistência de tais desgovernos e desperdícios de recursos públicos, que podem e devem ser melhor utilizados.
Além disso, ainda que insuficientes, os recursos para a saúde representam a segunda área de gasto do governo federal, atrás apenas da Previdência Social e, dessa forma, com importante impacto sobre o Orçamento.
Assim, a falta de sintonia que se tem observado, através da imprensa, entre os ministérios da Saúde e da Fazenda resulta, em grande parte, do fato de a saúde não estar acostumada a ser financiada via Orçamento da União, onde a disputa pelo dinheiro é bastante explícita, além de haver dificuldades na área econômica em se entender as necessidades específicas do setor.
Nesse sentido, é altamente positiva a iniciativa do ministro Ricupero em ter uma assessoria específica para a saúde.
Paralelamente, é imperativo que vingue o processo de municipalização da saúde, que transfere aos municípios os recursos e o comando do Sistema Unificado de Saúde, o que possibilita maximizar o aproveitamento dos recursos humanos e econômicos existentes. Adicionalmente, Estados e municípios devem dar sua contrapartida orçamentária ao investimento federal.
Por outro lado, cabe ao governo reconhecer que 70% dos leitos empregados pelo SUS pertencem ao setor privado, filantrópico ou lucrativo, e que são esses leitos que o viabilizam.
Nesse sentido, pagar pelos serviços prestados com atraso e sem correção monetária é o mesmo que dar um tiro no pé, e apenas estimula o descredenciamento desses leitos pelos melhores hospitais ou, pior, induz à corrupção.
O processo de reformulação do financiamento da saúde não é isento de riscos. Interesses políticos e econômicos serão contrariados, mas não deverão impedir que as melhores decisões em benefício da população sejam tomadas.
Por outro lado, posições técnicas e políticas impróprias poderão gerar soluções inadequadas, que implicarão na malversação dos recursos existentes.
Cabe às lideranças da saúde, independentemente de suas posições político-partidárias, levar ao poder constituído suas visões e propostas e por elas lutar, em um legítimo exercício de democracia.

RAUL CUTAIT, 44, cirurgião gastroenterologista, é professor associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e cirurgião do Hospital Sírio Libanês. Foi secretário da Saúde do município de São Paulo (administração Paulo Maluf).

ROBERTO IUNES, 33, doutor em economia pela Universidade de Boston (EUA), é professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

Texto Anterior: Indigência total
Próximo Texto: Quem merece o voto; Atlas e TV; Gato que ruge; Cavalo com chifre; Máquina de tubarões; Adesismo católico; Desvio de caixa; FHC no cinema; Farmácia; Castigo de Amin; Procura-se carro sem ágio; Remédios e canos; Bondade são-paulina; Interesse de 'grupúsculo'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.