São Paulo, quarta-feira, 31 de agosto de 1994
Próximo Texto | Índice

O cientista e a limpeza étnica

MARCOS TERENA

Mais uma vez, nós, os povos indígenas, somos vítimas de um pensamento que separa e que tenta nos eliminar cultural, social e até fisicamente. A justificativa é que somos apenas 250 mil pessoas e o Brasil não pode suportar esse ônus, pensamento esse apresentado por um dos principais conselheiros de Fernando Henrique Cardoso, candidato a presidente do nosso país.
A tese, apresentada numa conferência para oficiais-generais pelo cientista Hélio Jaguaribe, precisa, a nosso ver, como cidadãos da selva, ser revista pela comunidade científica. Hoje somos nós, os índios, a serem atacados; amanhã, quem sabe, poderão ser os negros, os favelados, menores abandonados e outras minorias. Tudo em nome de uma verdade que não condiz com a nossa realidade nacional.
No começo, quando havia nessas terras somente os povos indígenas, nossos antepassados receberam portugueses, ingleses, holandeses e africanos, acreditando no amor ao próximo e na formação de um grande país multirracial.
Ao longo do tempo, no entanto, fomos traídos, perseguidos e mortos, quase que exterminados depois que algum "expert" propagou sua tese de que éramos seres sem almas.
Vivemos a era do século 21 e, por isso mesmo, nós, os índios, não podemos suportar mais esse tipo de tratamento. De um lado, somos "preguiçosos" ou "obstáculos ao desenvolvimento", quando o assunto é crescimento econômico; de outro, somos "selvagens", "primitivos", "carentes de tudo", quando a análise é social.
A verdade é que somos o que somos: donos da terra, possuímos línguas, tradições econômicas e sociais totalmente diferentes desse dito mundo moderno. Mas compreendemos que, a partir do primeiro contato com o homem branco, não podemos mais viver isoladamente.
Somos parte de um país onde convivem negros, brancos e imigrantes de várias origens, o que faz com que suas diferenças sejam a unidade na defesa dessas terras e da majestosa e maravilhosa natureza, um patrimônio guardado por nossos antepassados para o bem viver de todos os que compõem o Brasil multirracial e trabalham por sua construção.
A tese de Jaguaribe é tão absurda ou, no mínimo, desinformada, que chega a insinuar que as Nações Unidas estão propondo a independência das comunidades indígenas, quando nós, os índios, queremos contribuir para a verdadeira independência do nosso país, especialmente em relação ao grau de pobreza, de menores carentes e de pessoas que não têm o que comer, sem citar a dívida externa que corrói nosso povo, quando poderíamos ser a maior potência mundial, sob todos os aspectos.
Não admitimos olhar para o Brasil, terra de nossos antepassados, como uma nação subjugada por um "desenvolvimento" que enriquece uns poucos e empobrece a grande maioria.
Nós, os índios, queremos falar, mas queremos ser escutados na nossa língua, nos nossos costumes. E também quando formos às escolas, porque é preciso aprender a ler, a escrever. Não para que deixemos de ser índios, mas para que tenhamos igualdades de condições na defesa dos nossos direitos e da nossa vida.
O Brasil possui 180 nações indígenas com línguas diferenciadas e, tão certo como o sol que nasce a cada alvorecer, não será mais esse ou aquele conceito científico que irá nos desviar da caminhada em direção ao futuro, nos rastros de nossos antepassados.
É preciso congelar essas idéias colonizadoras, porque elas são irreais e hipócritas e também genocidas. Não é esse o Brasil que nós, os índios, queremos, não é esse o nosso sonho de viver.
Como membro de uma comunidade indígena que sabe ler, escrever e que continua índio, quero sugerir ao professor Jaguaribe e aos oficiais que o aplaudiram após sua explanação, que coloquem seus ouvidos no chão e tentem escutar os lamentos e os choros e sentir o cheiro de sangue derramado na Bósnia e na África entre povos irmãos, onde o simples fato de serem diferentes os tem levado à morte e à destruição, justificadas por um pensamento idêntico: a limpeza étnica!

Próximo Texto: A banalização eleitoreira dos evangélicos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.