São Paulo, quinta-feira, 1 de setembro de 1994
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Nem confinamento nem aculturação

JARBAS PASSARINHO

O eminente brasileiro Hélio Jaguaribe, ao que leio nos jornais, defendeu um ponto de vista a respeito da questão indígena, que foi traduzida, com um toque de primarismo, como se ele pregasse a "extinção do índio".
Estou certo de que o ilustre mestre terá se definido a favor da incorporação dos índios à comunhão nacional, o que se considera como doutrina integracionista, de par com a tutela civil estabelecida pelo Código Civil, de 1916.
Contrário a essa doutrina há a corrente que, a partir de 1988, com a promulgação da Constituição, em seu capítulo oitavo, prescreve, como norma, o direito de os índios manterem sua organização social, tradições e costumes, além de lhes garantir a demarcação de suas terras tradicional e permanentemente ocupadas, "imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições".
Em consequência, tramita no Congresso Nacional projeto de lei visando a modificar o atual Estatuto das Sociedades Indígenas, mais conhecido como Estatuto do Índio, editado em dezembro de 1973. Em favor de tese não-integracionista milita a aprovação, no corrente período legislativo, da convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre povos indígenas e tribais em países independentes.
Estamos, pois, diante de fatos e não mais de hipóteses. De um lado, o mandamento constitucional e, de outro, a inconformação dos que, como o professor Hélio Jaguaribe, desejam retornar à doutrina consubstanciada na lei nº 6.001, de dezembro de 1973. Claro que há argumentos valiosos de ambos os lados em conflito de pensamento.
As violências praticadas contra os povos indígenas, algumas recentes, levam a rejeitar o princípio de que o progresso, com suas conquistas, sobrepõe-se aos meios pelos quais ele seja alcançado. Alguma coisa parecida com a tese de Maquiavel, de que os fins justificam os meios.
Hoje, tardiamente, os norte-americanos repudiam o general Custer, mas seus antepassados nele viram a espada que conquistou o Oeste, dizimando nações indígenas de então, para incorporar ao território norte-americano a sua porção mais rica. O remorso é tardio e insincero. O sacrifício de Ataualpa e o genocídio dos astecas não foram menos que o reconhecimento dos monarcas espanhóis do "heroísmo" de Pizarro e Cortêz.
Isso, dir-se-á, é coisa dos arcanos da história. O importante é discutir o hoje e não o ontem. De acordo, só que nos dias hodiernos ainda há conquistas territoriais feitas à custa da eliminação fria e calculista de povos indígenas.
Voltando ao dr. Jaguaribe, argumenta-se que nada na história nos sugere que, adotado o integracionismo, se conseguiu a total aculturação dos índios. São exemplos citados frequentemente os casos do Canadá e dos Estados Unidos.
Já em favor dele, há os que se rebelam contra os que acreditam ser um absurdo a manutenção do respeito aos "folk-ways" indígenas, em verdadeiros enclaves no território de uma nação soberana.
A minha experiência relativamente recente, no Ministério da Justiça, ao qual é subordinada a Funai, mostra que as correntes são antagônicas e radicais.
A demarcação da terra indígena ianomâmi, por exemplo, que era um dever constitucional, tornou-se impopular na corporação de minha origem, na maioria de seus integrantes, não importando que eu haja provado, à sociedade, que isso não implica nem implicará desmembramento do território brasileiro.
Argumenta-se apaixonamente, e a paixão não é boa conselheira, imagine-se, na prática, o que poderia ocorrer com esse povo primitivo, se tivermos de "acabar com o índio", integrando-se a sua comunidade na nossa, na chamada "civilização branca". Os ianomâmis se transformariam em garimpeiros?
Pela concepção glotocronológica, há quatro derivações linguísticas da original. São centenas ou milhares de anos, para essa evolução. Iríamos obrigá-los a falar português?
Bem sei que o exemplo é excepcional, mas tomemos os caiapós, do meu Pará, por paradigma. Suas terras estão demarcadas e são maiores que a dos ianomâmis. Seus caciques, subornados em grande parte pelos madeireiros, têm automóveis e até aviões. Parecem burgueses bem-sucedidos. Não estão longe disso, por sinal. E o seu povo? Em quase nada se beneficia da riqueza vendida ao comprador inescrupuloso, enquanto a floresta é dizimada.
Não iria eu atribuir ao professor Jaguaribe a defesa disso, da mesma maneira que ele, certamente, não atribui má-fé aos que se batem pelo respeito ao direito de os índios manterem suas formas culturais próprias, e, menos ainda, que seja essa corrente constituída de "entreguistas" a serviço de vis interesses internacionais.
Pessoalmente, não sou a favor de existência de quistos indígenas, intocáveis, distanciados hermeticamente da sociedade brasileira, como não fui favorável à manutenção do que chamei as 19 ilhas, como "campos de concentração", com que se chegou a delimitar a terra indígena ianomâmi.
É certo que há ONGs que pretendem criar nações indígenas, como enclaves no nosso território, e em seguida pleitear a sua autonomia ou a independência. Sempre repeli essa idéia. Tenho como certo que jamais prosperará na ONU. A prova é que, na subcomissão própria, proposta nesse sentido foi rejeitada com o voto dos Estados Unidos e do Canadá. Só países escandinavos se propõem a apoiar essa tese esdrúxula.
Entretanto, sei que preocupa os patriotas, fardados ou a paisana. Se isso fosse ameaça real, com grande probabilidade de êxito, então por que não decidiria logo a ONU pela internacionalização da Amazônia?
Que há cobiças, não há como negar. Que o secretário Warren Christopher disse que "nações que não respeitam direitos humanos ou degradam o meio ambiente não podem ter soberania senão relativa", também é verdade. O perigo é mais amplo.
O genocídio dos índios, se existisse, seria um belo pretexto. Outro, o desmatamento desordenado da floresta amazônica. Ora, precisamos lembrar a lição do marechal Castello Branco, que nos preveniu contra a "estratégia do medo". Não devemos descurar de nossa soberania, mas não cabe nos deixar dominar pelo medo.
Em poucas palavras sobre política indigenista: nem aculturação prenhe de vícios, feita por aventureiros em nome da "civilização branca", nem confinamento de tribos, infensas aos meios naturais de conquista da cidadania brasileira, como se fósseis fossem, "congelados no estágio primário de sua evolução".

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