São Paulo, sexta-feira, 2 de setembro de 1994
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Civilização ocidental perde a arrogância

MARCELO COELHO

O relativismo total questiona as virtudes de nossa época e impõe uma atitude humilde em relação ao passado
Passou o tempo das sensações extremas e temperos fortes, dos molhos gordurosos
A busca compulsiva pela precisão é uma tara do intelecto do Ocidente, diz Valéry
MARCELO COELHO
Da Equipe de ArticulistasNão sou muito de ir a concertos. As entradas são caras, o ambiente é burguês demais, minha atenção se dispersa, é uma mão-de-obra chegar ao teatro, ouvir um disco em casa me parece melhor e, principalmente, não tenho muita idolatria pelos "grandes intérpretes" de música clássica.
Mas fui ver nesta semana um conjunto de música barroca, La Petite Bande, tocar obras de Bach e Vivaldi. Esse grupo segue uma orientação cada vez mais presente no circuito internacional: executar a música antiga com instrumentos "autênticos", seguindo as regras de interpretação da época em que as obras foram compostas.
O efeito é surpreendente. Quem está acostumado a ouvir o "Concerto de Brandemburgo nº 5" de Bach com uma grande orquestra de cordas teve a experiência de topar só com uns cinco ou seis gatos pingados no palco. Os instrumentos também são diferentes: uma flauta de madeira, com uma sonoridade menos brilhante do que as modernas; os arcos dos instrumentos de corda são curvos.
Qual a vantagem dessa espécie de arqueologia musical, dessa busca pela "autenticidade" na interpretação?
O ouvinte ganha, sobretudo, em surpresa e novidade. Conseguimos perceber melhor o peso das notas graves –violoncelo, contrabaixo– num conjunto menor do que as grandes massas orquestrais a que estamos acostumados.
Tudo fica, ao mesmo tempo, mais "escuro" e mais "claro": a articulação das notas é mais precisa, o enfoque da obra é mais "racional", menos "romântico"; a sonoridade dos instrumentos fica mais fosca, mais sombreada –como em uma daquelas paisagens de pintura holandesa, onde até as árvores e os campos são meio marrons.
A tendência moderna para recuperar as formas de interpretação antigas suscita algumas perguntas.
Em primeiro lugar, deve-se ter em conta o aspecto paradoxal desse movimento pelos instrumentos autênticos, pela interpretação da música tal como "estava na cabeça" de Bach, Vivaldi ou Monteverdi.
É como se o lema essencial do modernismo –o "make it new" de Ezra Pound– se tivesse transformado no seu contrário: "make it old". Faça a música soar antiquada, e esta será a maior novidade. O que importa é a surpresa: e ironicamente, nestes tempos pós-modernos, guiar-se pela mais absoluta fidelidade ao original já é um fator de novidade.
Um defensor especialmente inteligente das "reconstituições" musicológicas tem dois livros publicados no Brasil, pela Jorge Zahar. É Nicolaes Harnoncourt, e fala destes e de outros problemas, sem nenhuma mistificação. Não ignora que nunca mais ouviremos Bach ou Mozart da mesma maneira com que seus contemporâneos ouviram. Até porque fomos educados musicalmente em outras bases.
E queremos, claro, emoção e massa sonora, grandes orquestras, romantismos e emocionalidades. Ouvi La Petite Bande tocando o "Concerto em Ré Menor para Dois Violinos" de Bach. Conhecia a obra com Heifetz e Erick Friedman. Tudo me pareceu mais cavo e oco, mais seco e duro, mais surdo e exato.
O que será que Bach estava pretendendo? Por certo, quando compôs aquele concerto, ele estava sendo mais "romântico" e exaltado do que permitiam as convenções da época. Não estaria, na verdade, à procura de sonoridades e violências que só o tempo futuro, ao incluir esse concerto no repertório, estava pronto a lhe oferecer?
Onde está, portanto, a exatidão no que diz respeito às intenções do autor? Se a técnica da interpretação musical mudou muito, do século 18 aos dias de hoje, será que não foi por fidelidade ao que as obras antigas continham dentro delas mesmas?
Mas, como estamos em busca de novidade e como as interpretações "barulhentas" e "românticas" já esgotaram seu poder comunicativo, trata-se de buscar "outra coisa".
Essa "outra coisa" foi conseguida, com absoluta infidelidade aos critérios históricos, na orquestração que Gustav Mahler fez de uma suíte de Bach, ou no arranjo sequíssimo, cibernético, feito por Webern para um trecho da "Oferenda Musical" do mesmo autor.
Desconfio que o interesse por instrumentos originais e pela autenticidade corresponde a um fenômeno mais geral nas sociedades desenvolvidas.
É contemporâneo do gosto pela "nouvelle cuisine" e pelo sushi; pelo minimalismo na música; pela obra de historiadores como Le Roy Ladurie e Philippe Ariès, ou seja, a chamada "nouvelle histoire", centrada nas questões do cotidiano (vide as coleções "História da Vida Cotidiana" e "História das Mulheres", editadas pela Companhia das Letras).
Da "nouvelle cuisine" à exatidão interpretativa da música barroca, estamos às voltas com o mesmo fenômeno. É o anti-romantismo. Passou o tempo em que considerávamos a história da humanidade como um progresso épico, tumultuado e tempestuoso, conduzindo a um presente admirável e a um futuro radioso; passou o tempo das sensações extremas e dos temperos fortes, dos molhos gordurosos. O gosto contemporâneo se volta para o seco e para o "light".
Aceita, sobretudo, o relativismo total. Um piano moderno não é melhor do que um cravo antigo, uma flauta moderna não é melhor do que as antigas flautas de madeira do tempo de Bach. Nikolaus Harnoncourt prova perfeitamente, em seu livro, aquilo que se perdeu e aquilo que se ganhou ao usar os instrumentos musicais modernos. Ganhou-se em igualdade de som, perdeu-se em riqueza harmônica, em espessura de som. Mais brilho e intensidade, menos timbre, menos cor, menos individualidade sonora.
É o relativismo, ou seja, a desconfiança quanto às virtudes de nossa própria época, o que determina em última análise o prestígio de historicismo, musical ou não; também o da antropologia, da história do cotidiano, da comida japonesa.
A civilização ocidental perdeu sua atitude de arrogância. Torna-se humilde face ao passado, não se crê mais portadora do progresso e, com isto, está pronta a admitir valores culturais estranhos, como a comida japonesa. Alguém já pensou que se comia peixe cru por necessidade e não por prazer?
Pouco importa. Nossa necessidade e nosso prazer dirigem-se ao "novo". E nessa busca do novo a música antiga começa a fazer sentido. Assim como a "nouvelle cuisine", o sushi, os historiadores franceses, a obra de Michel Foucault –que insistia na incompatibilidade estrutural do pensamento nas suas diversas épocas, barroca, classicista, iluminista, oitocentista.
Decadência do Ocidente? Talvez. Quem sabe, nesse movimento, esteja sua maior astúcia: a de renovar-se sempre, sem escrúpulos, até na busca do que já passou ou do que é exótico, pois, ao menos nas interpretações musicais da música barroca, percebemos algo que Valéry definiu bem como tara do intelecto ocidental: uma busca compulsiva pela precisão.

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