São Paulo, sábado, 3 de setembro de 1994
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Imprensa amarronzada

JOSUÉ MACHADO

O poeta e professor C. Faraco, de São Paulo, SP, mandou nota publicada na seção "Persona", do "Estadão", há semanas, sobre as andanças do ex-diretor do Teatro Guaíra, Oswaldo Loureiro.
"Enquanto Loureiro chega ao Rio, sua mulher Madalena vai para a Itália. Cláudia, a filha do casal e mulher do jogador de futebol Alemão, que mora em Bergamo, está prestes a dar a luz ao quarto neto de Loureiro e seu terceiro filho."
O jogador Alemão obviamente ainda não havia chegado ao São Paulo, e o de menos nesse textículo é o "... dar a luz ao...". O verbo dar, muito usado ultimamente –é dando que se recebe, dar apoio, dar, dar, dar– às vezes é maltratado. Na verdade, o que se dá às vezes não passa de empréstimo. Importante, no entanto, é que, no sentido de parir, dar é bitransitivo: dar à luz uma criança. Em geral o objeto direto, que é a criança ou o animal nascente, fica oculto: "Ela deu (um filho) à luz", e já se sabe, pela natureza da fêmea, no bom sentido, que ser ela fez ou fará vir à luz: faltará saber apenas o sexo. Portanto, é muito feio escrever, como no texto sobre a família Loureiro, que a moça vai "dar a luz ao...".
Também se costuma dizer que um autor deu à luz uma obra, quando a publicou. Pode-se dizer que tal construção tem gosto duvidoso. Em todo caso, o autor do texto sobre os Loureiro deu à luz essas linhas num dia pouco feliz.
O pior não é o engano muito comum de regência. Pior, muito pior, como lembra o professor Faraco, é que o textículo desarvorado dá voltas como o Zinho e acaba insinuando tenebroso incesto de que não seria capaz nem um daqueles terríveis tablóides ingleses. Estaria o autor ensandecido por meia dúzia de cubas-libres? "Cláudia, a filha do casal e mulher do jogador de futebol Alemão (...) está prestes a dar a luz ao quarto neto de Loureiro e seu terceiro filho." Como poderia a criança ser o quarto neto de Loureiro e seu terceiro filho? Como? Aleivosia da pior espécie.
Presente de Deus
A ex-ministra Dorothea Werneck deu a um artigo publicado nesta Folha o título "Pela Valorização da Pessoa Humana". Por que ela fez isso? O inesquecível Rogério Magri disse uma vez que sua cadela também era gente ou coisa assim e causou certa comoção. Convém lembrar que o adjetivo humano significa pertencente ou relativo ao homem. E que pessoa, do latim "persona", significa homem ou mulher. Dizer "pessoa humana" é o mesmo que dizer "Dorothea presente de Deus", porque Dorothea já significa "presente de Deus".
Só há uma explicação para o engano da sorridente dádiva de Deus: ela deve estar assistindo aos programas do horário político compulsório e achou que devia ser bem clara, mesmo com o risco da redundância. Porque de fato há certos candidatos de que a humanidade não parece ser o traço dominante. Serão eles pessoas humanas?
JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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