São Paulo, sábado, 3 de setembro de 1994
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Martius faz romance amazônico sem Brasil

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Desde os tempos em que, ao raiarem os anos 50, fiz minhas tímidas viagens à Amazônia e ao Brasil Central –subi o rio Amazonas numa gaiola até Manaus, subi em seguida o rio Negro e fiz sucessivas visitas ao Parque Indígena do Xingu– passei a devotar incontida admiração pelos naturalistas dos séculos 18 e 19.
Os filósofos e monges eruditos da Idade Média dedicaram a vida à exploração do céu. Os naturalistas, descendentes diretos dos descobridores quinhentistas, foram os grandes apaixonados pela Terra. Não é à toa que tantos "scholars" –e logo nos vem à mente o nome de Sérgio Buarque de Holanda, com suas "Visões do Paraíso"– mapearam depois o fascinante caminho que vai das especulações em torno de anjos e édens à experiência dos que iam desbravando terras duras e mares frios mas ainda com a esperança de encontrar nelas e neles os monstros, os anjos, o sobrenatural.
A verdade é que, mesmo nas modestas explorações ou passeios que fiz na floresta, me valendo de modernos recursos de transporte e comunicações, vi como é penosa a vida no mato. Que coisa inaudita deve ter sido ela no tempo em que nos visitaram La Condamine, Von den Steinen, Bates ou em que nosso Alexandre Rodrigues Ferreira vagou anos pelo vale amazônico.
Outro desses heróis naturalistas foi Martius, cujo nome em geral nos ocorre grudado ao de Spix, como se formassem uma firma importadora, Spix & Martius. Zoólogo o primeiro e botânico o segundo, importaram em si mesmos seu grande saber e sua heróica disposição naturalista de enfrentar mosquito, feras, febres, burocratas, com o objetivo de transformar em conhecimento ordeiro a caótica natureza do Brasil.
Aqui estiveram de 1817 a 1820 e, até hoje, com suas descrições e suas pranchas coloridas de bichos e plantas, vivem entre nós, ainda que apenas na sonolência das bibliotecas, na seção de livros raros.
Mas de repente, e quase dois séculos depois, a novidade. Um dos sócios da nobre firma, Martius, ou Carl Friedrich Philipp von Martius, deixou-nos também, esquecido até agora, um romance, "Frei Apolônio, um Romance do Brasil", publicado pela Editora Brasiliense. Terminado em 1831, o romance (como que prevendo o destino de tanto romance brasileiro) ficou na gaveta de Martius.
Devemos sua leitura em português a Erwin Theodor, que descobriu na Biblioteca Estadual da Baviera os originais dessa ficção do autor da monumental "Flora Brasiliensis", da "Viagem pelo Brasil", com Spix, e sobretudo da dissertação "Como se deve escrever a História do Brasil". Erwin Theodor nos deu um verdadeiro presente, pois não só descobriu o livro como o traduziu e dotou-o, na edição brasileira, de uma apresentação valiosa.
Vou logo dizer a estranheza que o romance me causou, sobretudo levando-se em conta que Martius foi o autor de "Como se deve escrever a História do Brasil", que nunca li mas que teria influenciado grandes historiadores nossos, como Varnhagen e Capistrano de Abreu. O maior defeito que eu apontaria em "Frei Apolônio, um Romance do Brasil" é que o Brasil, como entidade nacional, política, não existe nele.
O livro poderia situar-se em qualquer dos demais países da bacia amazônica, como o Peru, a Bolívia, a Colômbia. Não estou fazendo qualquer reivindicação nacionalista, mesmo porque fica mais do que explicitado, desde o título, que a ação transcorre no Brasil. Mas é um Brasil puramente geográfico.
O livro tem três personagens bem desenhados, apesar de serem sobretudo carregadores das idéias do autor. Isso, aliás, era o que ocorria nos discursivos "romances de formação" daquele tempo, importantes mas cansativos. Vem logo à mente o grande modelo desse tipo de literatura, o "Wilhelm Meister", de Goethe.
Acontece que Goethe é Goethe, e entre as fadigas que aguardam quem se aventura por "Wilhelm Meister" surge assustadora, quase que girando entre os astros, uma figura como a de Macária. Em "Frei Apolônio" não surge nada comparável, mas os debates travados pelo velho sacerdote Apolônio, o jovem cientista Hartoman e o ardente empresário Riccardo dão ao livro, que traz no bojo tramas sinistras do mais puro romantismo alemão, um forte sabor de época.
Por que será que Martius, que tanto estudou e entendeu o estimulante Brasil do seu tempo –fim da vilegiatura que desfrutou no Rio o pacato d. João 6º, início do reinado de Pedro 1º, revoluções separatistas e, finalmente, em 1831, quando Martius terminou o romance, renúncia ao trono de D. Pedro 1º–, não deixou nada disto transparecer, colorir, dar peso histórico às andanças dos três heróis e seus fantasmas particulares pela Amazônia brasileira?
É claro que há, no romance, lindas páginas sobre a flora e a fauna locais, mas podiam ter sido escritas por algum romancista alemão que jamais houvesse pisado aqui mas houvesse lido, digamos, Spix & Martius. O livro é bom mas lhe falta uma âncora. Fica flutuante. Falta-lhe... o Brasil.
O cenário passa a ser uma brumosa massa terráquea e humana, "a América". Ou quase humana, pois Martius nos inquieta, com boa razão, em relação ao que poderá acontecer com os índios que estão caindo nas mãos de brancos às vezes até bem intencionados mas sempre e sempre acreditando na superioridade dos europeus.
Os índios do livro são em geral bonzinhos e as índias ternas e estúpidas, o que nos leva a achar que mau profeta Martius não foi. Ele sentiu bem a luta, que já então se travava e que só iria se agravar, entre forças "européias" e, por mais que se procure outra palavra, o "selvagem"; entre a enérgica hipocrisia do europeu que se pretende educador e civilizador do silvícola, ainda que a ferro e fogo, e o desânimo do índio em entender o que é que o homem civilizado realmente deseja dele.
Um descendente dos incas, que surge, intempestivo, no romance, sabe muito bem que, nos locais em que encontrou alguma civilização indígena em pé, como no México e no Peru, o europeu tratou de destruir a dita civilização e de roubar-lhe o ouro. Mas mesmo depois de fazer esse ato de contrição em relação aos incas, Martius continua indeciso em relação aos índios em geral.
No último capítulo, quando já se despede da Amazônia, Hartoman descobre, com enlevo, um povoado em que índios e descendentes de índios vivem uma vida de trabalho e pura alegria. No entanto, foi a miscigenação, mais o cristianismo, conclui Hartoman, que teria originado aquela ingênua república de seres alegres:
"Aqui, a associação familiar não é ditada exclusivamente pelo amor carnal, tal como acontece com os índios, tão generosamente defendidos pelo meu amigo, o prático Riccardo. Assim, essas cabanas são locais de satisfação e alegria, o que a indiferença muda, ensimesmada e indolente dos índios jamais consegue alcançar."
Na criação, em 1960, do Parque Indígena do Xingu, os irmãos Villas Boas, e não funcionários do Serviço de Proteção aos Índios, mostraram ao país como amor e dedicação podiam dar ao índio brasileiro um destino que ainda não tiveram em nenhum outro país da América. Em reservas como a do Xingu vê-se como é viável cuidar, a um só tempo, da floresta que queremos preservar e do índio que deveríamos querer preservar, em atenção, quando mais não fosse ao nosso sossego espiritual, à satisfação de um dever cumprido.
Estava eu fechando este artigo quando vi que voltava ao palco a velha idéia de destruir o índio... pela educação. O projeto, que sempre se apresenta com cara progressista, é o de dar ao índio o que até hoje não conseguimos dar à criança brasileira em geral: escola, educação. Só que, no caso do índio, com o objetivo de fazer com que ele deixe de ser índio. Para que passe a ser, simplesmente, criança pobre, faminta, e depois, favelado, desempregado, ladrão.
Que essa velha idéia esteja sendo agora prestigiada por Hélio Jaguaribe –velho companheiro do "Correio da Manhã" e desde aqueles tempos amigo– me deixa inconformado. É um projeto falso demais e demasiadamente grosseiro para ser defendido por um estudioso do Brasil tão refinado, tão esclarecido como Hélio Jaguaribe.

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