São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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O santinho e o diabo

JANIO DE FREITAS

Embora só transmitida por uma falha desmoralizante da TV Globo, a autodefinição de Ricupero deve ter sido a mais chocante declaração jamais apresentada na história da TV: um ministro da Fazenda dizendo ao seu país "eu não tenho escrúpulos". Apesar disso, sejamos gratos a ele por expor-nos como se reconhece e poupar-nos, assim, da procura de palavras para sugerir, de maneira enviesada, algo que talvez nem chegasse perto da sua precisão crua.
O autoconhecimento de Ricupero está muito acima, porém, do seu conhecimento dos outros. Considera ele que, no empresariado, "é tudo bandido". Será, quem sabe, o efeito espelho, que faz certas pessoas verem as outras à imagem de si mesmas, da maneira como se vêem. Há muito empresário decente. O banditismo é identificável nos que, tanto faz se no empresariado ou em qualquer outra atividade, traçam o seu comportamenteo por uma característica comum a todos eles: a falta de escrúpulos.
Não há apenas, portanto, na gravação feita por Ricupero, a comprovação do comprometimento do governo com o esquema eleitoreiro de Fernando Henrique Cardoso. Há também o aspecto administrativo, de um ministro que diz, explicitamente, estar ludibriando a opinião nacional, com declarações de teor forjado sobre procedimentos governamentais e suas próprias atitudes: "o que é bom a gente fatura, o que é ruim, esconde".
A única providência admissível em Ricupero, à vista da massa de coisas inadmissíves que disse, seria o imediato pedido de demissão. O problema é que tal gesto depende de algum escrúpulo e, nesta matéria, ele sabe o que diz de si mesmo, mais do que qualquer de nós pôde presumir. Na ausência da iniciativa demissionária de um ministro sem condições, ao presidente Itamar Franco caberia o dever de evitar a desmoralização continuada do governo que, afinal de contas, não é o seu governo, é o governo do país.
De volta ao aspecto eleitoreiro, é compreensível que Fernando Henrique adote mais uma vez, na sucessão de fatos que denunciam os vícios e as ilegalidades que o circundam, a falsa reação de quem nada tem com os fatos. "Se ele disse isso, a responsabilidade é dele", é uma frase que Fernando Henrique sabe destituída de fundamento. A lei é clara quando à impugnação do candidato beneficiado por ilicitudes, entre as quais o envolvimento governamental em favor da candidatura. E não poderia ser diferente. Não fosse essa extensão da lei, sempre seria fácil ao candidato obter ajudas governamentais, que lhe deixariam os benefícios e o isentariam das sempre improváveis reações prejudiciais.
De nenhum dos envolvidos nesta enorme marmelada eleitoral há o que esperar, no entanto, de respeito às instituições e à cidadania em geral. O saldo previsível é só o conhecimento de que Rubens Ricupero não chega nem ao pequeno tamanho que tem. O santinho se confessa um pobre diabo.

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