São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Escravas domésticas

RICARDO SEMLER

Resmungo muito sobre a tal da nossa elite, e as pessoas bronqueiam comigo, dizendo que as elites são iguais em qualquer lugar do mundo. Além de não concordar, já que confunde-se elite com coluna social, percebo cada vez mais que o caminho para fora do subdesenvolvimento vem por direções obtusas. Por exemplo?
Poucas situações são mais vexantes e inaceitáveis, porém perfeitamente deglutidas na sociedade, do que o nosso exército de empregados domésticos. As elites, e no Brasil esta definição começa pela baixa classe média, são subdesenvolvidas enquanto empregadoras. As mesmas pessoas que clamam por um sistema de impostos justo, que elegem e depois derrubam um Collor, que bradam pela moralidade e sonham com Miami, são as casas pequenas e senzalas dos anos 90. A condição de uma empregada doméstica no Brasil é vergonhosa. A assinatura de carteira de trabalho é difícil, e raras vezes pelo salário correto, a rotina de trabalho é estafante e indigna, e o roteiro de folgas, estúpido. As exigências das "patroas" são totalmente desproporcionais ao salário, as condições de moradia estão no limiar da indecência, e a humilhação, um risco constante. É uma massa de trabalho semi-escravizada e logo por quem –os que clamam ruidosamente por um Brasil grande e melhor.
É também o antro do paternalismo. Pega-se uma retirante do Nordeste ou uma garotinha do sul de Minas e, entre aspas, ensina-se tudo. "Tudo" inclui atender o telefone, limpar a casa e cozinhar o famoso trivial. Fundamentalmente, ensina-se o cumprimento calado de ordens. Você é uma burrinha, coitadinha, portanto preste atenção. Tenho pena sim, sei que você não tinha banheiro em casa e não usa garfo, mas o patrão me deu este Christofle de presente e é assim que se passa o Silvo neles. Pronto. Quando atendem o telefone, do qual têm o devido medo, ao serem perguntadas "de onde fala" elas deixam de responder "é da sala".
Esta hipocrisia precisa acabar antes que possamos falar de Primeiro Mundo. Ninguém pode ter horário de trabalho das seis da manhã à meia-noite, com folga quinzenal, em troca de um ridículo salário mínimo, e mais casa e comida. É um estágio sutilmente acima da escravidão. Claro, as patroas dirão que estão salvando as coitadas, que estariam na rua se prostituindo ou morrendo de fome, não fosse por elas. Isto não exime da pecha de malandros os que se aproveitam desta condição para exigir mais do que oito horas e seis dias por semana desta gente que traz a esperança, adota famílias inteiras, e se comprime em cozinhas abafadas e dependências minúsculas em troca da sobrevivência. Todos nós desdenhamos os coronéis matreiros e antigos. O engraçado é que aceitamos este mesmo procedimento nas nossas casas, transpondo a angústia rural para um cenário de novela urbana.
Cada um se justifica mas a verdade nua, e muito crua, é que somos uma elite aproveitadora, desrespeitadora dos direitos das pessoas simples, e hipócrita, já que exigimos para nós muito mais do que estamos dispostos a dar para os que nos servem –uma classe que não tem direito nem a fundo de garantia e que tem no Ministério de Trabalho um cúmplice omisso das patroas. E que nunca reverterá esta situação enquanto houver excesso de mão-de-obra. Quem poderia instaurar a decência é somente a famosa elite. Mas tá bom assim, por que mudar, né? Ninguém se perturba, eu sei –fica só o registro.

Texto Anterior: Polícia prende suspeitos de matar editor em SP
Próximo Texto: Quinto fascículo do atlas tem até muralha da China
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.