São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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Os pontos mais críticos do Plano Real

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

As contradições do Plano FHC, depois denominado Plano Real, começaram de novo a ficar manifestas esta semana. A inflação medida pelo IPC-r, do IBGE, alcançando a 12% nos últimos dois meses, destampou uma série de inquietações que foram estampadas na grande imprensa. A ironia está nos lamentos, argumentos e contra-argumentos dos economistas simpatizantes do plano.
A "maldição dos índices" (uma suposta lei Mailson) fez com que a equipe econômica escolhesse o pior dos índices para medir a inflação oficial, proclamaram os "analistas de plantão".
Ora vejamos, que índice os senhores analistas desejavam escolher para verificar a perda do poder de compra da esmagadora maioria da população trabalhadora brasileira, desde o dia 15 de junho? Um índice calculado pela FIESP, o índice encomendado pelo setor financeiro à FGV, ou quem sabe o índice de variação do dólar comercial?
O que o índice do IBGE mostra é o que qualquer economista deveria saber: o efeito do choque de preços ocorrido nas duas últimas semanas de junho sobre o poder de compra da população que ganha entre um e oito salários mínimos e que esta modesta e velha economista já tinha previsto e anunciado com dois meses de antecedência.
A saber: que o choque de oferta de fins de junho levaria para o espaço o ganho proveniente da famosa diminuição do "imposto inflacionário", obtida com a reforma monetária.
É uma maneira interessante e nova (heterodoxa?) de diminuir o "imposto inflacionário", fazendo pagar previamente a conta aqueles que sofrem esse imposto (os que não tem conta remunerada).
Não tem problema, dirão os economistas de plantão. Em setembro, na data do dissídio, algumas categorias importantes poderão reaver as perdas dos últimos dois meses e assim sucessivamente para os dissídios subsequentes.
Claro! Com o detalhe adicional de que só poderão modificar o seu contrato de trabalho ao fim de um ano para evitar indexação e não recuperarão as perdas passadas.
Não resta dúvida que é uma maneira interessante de calcular a estabilidade do salário médio ao longo de um ano! Esta idéia não ocorreu ao dr. Mário Henrique Simonsen, quando aplicou pela primeira vez a fórmula da média, em 1964.
Ele estimou a inflação esperada, depois do primeiro plano de estabilização do governo militar, em 5%, o que se verificou rapidamente ser um equívoco, pois a inflação daquele ano foi de 40%. Mas, enfim, o primeiro grande arrocho salarial foi feito pelo menos com alguma "compostura teórica".
Qual será o modelo dos atuais tecnocratas de plantão? a hipótese sobre a inflação esperada durante o próximo ano será zero? Ou os trabalhadores devem contentar-se impávidos com mais um arrocho salarial programado a frio?
Moeda mais forte que o dólar, inflação zero –ou quem sabe negativa– vão compensar a nova queda da média? De média em média ainda acabaremos na paz dos cemitérios.
E o juros? Ah, os juros estão no momento extrapolando uma inflação anual que varia de 48% para os pequenos aplicadores até 600% para os que se endividam recorrendo ao crediário.
Alguns analistas (que temporariamente não estão de plantão) começam a se preocupar com os efeitos do arrocho salarial e do endividamento sobre os orçamentos das famílias de baixa renda.
Todas essas preocupações surgem em meio a grandes discussões sobre a necessidade de juros altos para conter o consumo. Desta vez, pelo menos, não podem atribuir a tão temida e ainda por vir "bolha de consumo" ao abono salarial, como no Plano Cruzado.
Este, como alguns estarão lembrados, puxou todos os salários para o dia D e deu um abono salarial de 8%, correspondente a uma inflação esperada de 20% (que foi o que acabou ocorrendo até dezembro), o que permitiu manter o poder de compra dos salários até o fim do ano, isto é, mesmo depois de o plano ter fracassado.
Agora, neste Plano Real, a média salarial já está caindo firme para quem não pertence às grandes empresas industriais da amostra Fiesp (ou IBGE) e continuará caindo mesmo que os dissídios supostamente reponham as perdas dos últimos dois meses e a inflação se mantenha entre 1% e 2% nos próximos meses. A partir de fevereiro, na melhor das hipóteses, a nova perda salarial já deverá ter ultrapassado os 20%.
Assim, para explicar qualquer aumento de consumo, terão mesmo de se contentar com o "efeito riqueza", "ilusão monetária" ou a "maldição dos índices" que afugentou os pequenos poupadores das cadernetas de poupança e os leva a gastar mais do que deviam!
Já que não há controle de preços nem política de rendas, clama-se pelo "bom senso" dos consumidores de baixa renda, tenta-se ensinar-lhes matemática financeira, apela-se para seu patriotismo!
Finalmente, terminar-se-há intervindo no mercado de crédito ao consumidor, uma vez mais por decreto, já que o aumento do compulsório dos bancos não resolverá a questão. Não são eles que emprestam aos consumidores, mas sim os comerciantes, para quem o crediário é um excelente negócio.
Enquanto o emprego, a saúde e o aumento de salário não vêm, cantemos em prosa e verso a moeda forte, que deve durar ao menos um ano, ancorada no câmbio.
Fixo em cima e flutuante embaixo, o mercado de câmbio livre comporta-se como um iceberg derretendo ou congelando segundo as pressões dos fluxos financeiros de entrada e saída de capitais especulativos. O teto continua firme, mas os que transacionam em dólar sabem que o terreno é escorregadio.
Alguns economistas, como o deputado Delfim Netto, estão preocupados com a saúde dos exportadores e com as "rachaduras" do plano. Não se preocupe, deputado, senão vão acabar dizendo que o sr. é um xiita da oposição.
Alguns governadores de "boa vontade" cederão, pressionados pelo Governo, parte dos impostos de exportação; serão dados alguns subsídios creditícios e outras isenções fiscais e os recursos para a saúde e educação ficam para quando Deus quiser.
Além disso, como todos sabemos, é indispensável que haja uma saudável competição, em que os nossos sapatos, têxteis e confecções demonstrem que os seus preços em dólar são iguais ou menores que os dos chineses em Nova York, embora em reais estejam pela hora da morte.
Então, ameaça-se com uma redução geral de tarifas de importação. E dizem que não estão programando desemprego e recessão!
Não seria melhor tentar levar à sério estas eleições, cair na real e escolher de vez um caminho diferente ao de outras eleições e planos fracassados, para evitar uma vez mais a frustração do povo?
Todo mundo sabe que a estabilidade da moeda não se obtém por decreto e é a etapa final de um longo processo negociado. Por quê tanta fé em "âncoras" artificiais?
Não seria melhor deixar que o mundo de trabalho organizado (o segundo mundo) negociasse com o empresariado (o primeiro mundo) as suas condições de trabalho, o regime salarial, a produtividade, os preços e os tecnocratas apenas ajudassem nessas negociações?
Não seria melhor tentar assumir politicamente a tarefa de resgatar os excluídos do nosso terceiro mundo cobrando dos mais ricos o custo do plano de estabilização e o cumprimento das leis?
A propaganda do Plano Real vem ofuscando as condições reais de sobrevivência dos trabalhadores. Fazer-lhe pagar mais uma vez a política de estabilização é no mínimo antiético, além de ser ineficaz, porque não são eles que produzem a inflação. Não são eles que controlam a riqueza financeira, nem a formação de preços.
O próprio governo deixou à solta os cachorros da inflação, desregulando os mercados cambiais, financeiros e especulativos. Pretende controlar os meios de pagamento na nova moeda (M1), sem controlar a ciranda financeira (M4) –aviso de Simonsen).
Deixa que os capitais especulativos passeiem à vontade entre as Bahamas, os fundos lastreados em dívida pública e a Bolsa de Valores (anexo 4) e paga juros escandalosos aos senhores do dinheiro (aviso de André Lara Rezende), comprometendo assim o orçamento que deveria ser público e social.
Tudo isso, meus caros leitores, apenas no que diz respeito à chamada política macroeconômica. Quanto ao resto, faço minhas as palavras de Otavio Frias Filho, em seu artigo de quinta-feira passada: "Gostaria que os adeptos de FHC, da nova ordem internacional, do Consenso de Washington, da qualidade total, que alguém, enfim, explicasse onde está o admirável mundo novo que eles anunciam".

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