São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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Anatomia da guerra nas ruas do Rio

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

Um ano depois da chacina de 21 pessoas na favela de Vigário Geral, no Rio, o jornalista Zuenir Ventura oferece uma contribuição essencial –e impressionante– aos que ainda procuram compreender o episódio.
"Cidade Partida" é consequência de dez meses de viagens de um morador da zona sul à zona norte da cidade. Intencionalmente, o autor não usa aspas ao escrever a palavra viagem e relata que descobriu em Vigário Geral "um mundo onde a república não chegou".
Com muita habilidade e pouca comiseração, mas sem perder o bom humor jamais, Zuenir Ventura traça os perfis de dois amigos de infância que se tornaram líderes da favela de Vigário Geral: Caio Ferraz, líder comunitário, e Flávio Negão, líder do tráfico de drogas.
Sobre Caio, o autor escreve: "A vida com um pé no subúrbio e outro na escola ou universidade construiu um curioso tipo de intelectual que costuma falar errado um conceito certo –quando o mais comum é o inverso."
Apresentado a Flávio Negão como autor do best-seller "1968 - O Ano que Não Terminou", Zuenir faz todas as perguntas necessárias para obter a versão do traficante sobre a chacina de agosto de 93.
Segundo a acusação do traficante, na origem da chacina está uma partida de cocaína, disputada por dois grupos de policiais, e a morte de quatro deles por seus colegas.
Zuenir também não deixa de indagar –e ouvir as respostas aterradoramente francas de Negão– sobre outros fatos escabrosos, como a prática de pena de morte na favela arbitrada pelo próprio traficante.
Livro-reportagem, ou "crônica noir", como prefere o autor, "Cidade Partida" revela também alguns bastidores do Viva Rio, um movimento "ecumênico" nascido na zona sul da cidade e formado por acadêmicos, empresários, sindicalistas e jornalistas após a chacina de Vigário Geral.
A partir da constatação de que era preciso "fazer alguma coisa" pela cidade, o Viva Rio deu início a uma série de iniciativas –a mais conhecida delas ocorrida no último dia 17 de dezembro, quando a cidade parou por dois minutos, a partir das 12h, em protesto contra a violência.
Encantado, aparentemente, com o movimento, Zuenir descreve em detalhes as boas idéias, os projetos utópicos e os inevitáveis percalços do grupo de "notáveis" cariocas.
Em sua epopéia, o Viva Rio enfrentou um momento dramático, ao ser noticiado o envolvimento do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, com o jogo do bicho, em março de 94. Aqui, inexplicavelmente, o autor sem mais nem menos esquece o episódio para se dedicar à procura de quem levou a notícia aos jornais.
Antes de demonstrar como está partido o Rio dos anos 90, Zuenir ensaia, num texto elegante e envolvente, mostrar que na década de 50, nos chamados "anos dourados", a então capital federal já vivia dividida, partida.
Miséria, violência, corrupção policial e segregação entre ricos e pobres, os elementos que ajudam a explicar o Rio de hoje, aponta o autor, já eram bem visíveis nos anos dourados.
Ainda que, infelizmente, não aprofunde a pesquisa, esta primeira parte do livro é altamente instrutiva ao relatar de que forma nasceu o Esquadrão da Morte, um conhecido grupo parapolicial, e diverte ao mostrar como agiam os principais bandidos da época, os famosos Cara de Cavalo, Mineirinho Passo Errado e Montanha.
Nessa época, o Rio já era uma cidade original e talvez já fosse, como bem sustenta Zuenir, "a parte que pode ser tomada pelo todo chamado Brasil".

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