São Paulo, sábado, 10 de setembro de 1994
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O segredo de aborrecer é dizer tudo

REINALDO AZEVEDO
NILSON DE OLIVEIRA

REINALDO AZEVEDO; NILSON DE OLIVEIRA
EDITORES-ADJUNTOS DE POLÍTICA

As acusações de uso da máquina oficial na campanha de Fernando Henrique Cardoso e as confissões voluntárias do ex-ministro Rubens Ricupero serviram de palco a uma comédia de relativismo ético inédita na história recente.
Às primeiras manifestações de indignação, reagiram os entusiastas do relativismo com argumentos que ora têm sua origem na psicologia, ora (pasme!) na antropologia, ora na literatura (os mais finórios...), ora, pura e simplesmente, no mandonismo dos donos do poder. E porque é o mandonismo, na esfera pública, o pai de todos os relativismos, foi preciso revesti-lo com o véu de ciências mais nobres. Mal-escondem, no entanto, a matéria de que são feitos.
Ainda que escribas maiores e menores tenham emprestado o suor de sua pena para ver "falso moralismo" onde o limite é a lei, a verdade é que a distinção entre o público e o privado tem uma história no pensamento social e político. De forma sistemática, a diferenciação é feita pelo menos desde o século 18.
É certo que o Brasil não fez a sua Revolução Francesa, de modo a consubstanciar também nos usos e costumes a submissão ao Estado de Direito. No entanto, movimentos como o das diretas-já e o da luta pela ética na política criaram, à moda brasileira, uma agenda que pede a revisão do sestro dos donos do poder. Mas não. Os Robespierre e os Marat de ontem são hoje os pais de uma espécie de restauração, não se diga da ordem monárquica, mas anárquica, em que a lei é mera ilustração ou filigrana decorativa.
O próprio PT, vítima presumida do conluio revelado pelo ex-ministro Rubens Ricupero, afirma que a lei eleitoral deve, sob certas circunstâncias, ser desrespeitada. Os comunicados da federação dos empregados dos Correios incentivando o uso da máquina sindical a favor de Luiz Inácio Lula da Silva são o duplo negativo dos torpedos eleitoreiros de Alexis Stepanenko.
Ricupero e suas confissões parabólicas brilham como emblemas desse relativismo ético. Transmitissem as antenas que o ex-ministro tem uma amante ou um apartamento para encontros amorosos secretos, e estaríamos a engrossar o coro dos que apontam invasão da privacidade. Mas não. O então ministro –que em nenhum momento deixou a investidura de seu cargo e só estava num estúdio de TV porque ministro– definiu-se com clareza sobre uma questão pública, de interesse, portanto, do conjunto dos cidadãos e, dado o momento, do eleitorado.
O flagrante da falta de escrúpulo político não se resolve na esfera do pecado e do perdão. Qualquer um que tenha alguma intimidade com o pensamento católico, ainda que não professe tal fé, sabe que o pecado não é parte de um sistema ou de um organismo: é eventual, acidental, e dos pecadores cuida Deus, para que retomem o caminho, já mais sabedores da verdade.
Ricupero não revelou um deslize, mas parte de uma engenharia destinada a pôr a serviço de um candidato um plano econômico a que todos estamos sujeitos por força de medidas provisórias –atos voluntários do Executivo contra os quais um dos Poderes da República pouco pode, e o que pode frequentemente não quer poder.
E que se desfaça aqui um equívoco malicioso. Não foi o PT que trouxe à luz as confissões de Ricupero, mas esta Folha, hoje o único dos grandes órgãos de imprensa que pode, de fato, se dizer de rabo preso com o (e)leitor.
Entusiastas do relativismo ético têm recorrido à metáfora do udenismo para qualificar os que pedem lisura no processo eleitoral e o respeito dos governantes às leis.
Metáforas em política quase sempre são burras (daí tantos psicologismos, antropologismos, literatices...). Em respeito à história, diga-se que o mal que a UDN fez ao país não decorreu de seu moralismo, mas de sua amoralidade.
O mal residia, enfim, no fato de que a política real da UDN se traduzia no que conspirava entre quatro paredes, sem uma antena parabólica que lhe pusesse termo e sem uma imprensa independente que revelasse, livre de paixões partidárias, sua vocação para renunciar ao Estado de Direito ao toque da primeira corneta.
A imprensa independente não quer cassar de Itamar Franco o direito de fazer seu sucessor. Também não lhe pede que cometa o maior erro de um governante, que é não governar e não servir ao público. Que o faça, no entanto, todos os dias do ano, não apenas quando o país está à boca da urna, e nos limites da lei.
Uma das citações que abrem o "Manual de Redação" desta Folha, assinada por Voltaire, serve de norte àqueles que, como jornalistas, têm, entre os seus deveres, o de vigiar a coisa pública e a atuação do homem público: "O segredo de aborrecer é dizer tudo".
Hoje, excepcionalmente, a coluna PERGUNTAS E RESPOSTAS, que sai aos sábados, deixa de ser publicada

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