São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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O tempo em suspenso

BENTO PRADO JR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Walter Benjamin é certamente um dos pensadores mais enigmáticos de nosso século. Sua escrita densa e hermética não auxiliou a recepção de sua obra, mesmo entre os seus mais próximos –parece que não é outra a razão da recusa de sua tese sobre o drama barroco pelo mestre Hans Cornelius, ou da perplexidade muda de Horkheimer diante do mesmo texto. Mesmo quando "compreendida", por seus amigos, ela o será segundo esquemas tão diferentes quanto os da teologia judaica e do materialismo histórico. Erros simétricos de leitura de uma obra coerente ou sintomas de uma dificuldade interna, de uma fratura do pensamento?
Falando dos traços "esquizóides" de Walter Benjamin, Adorno parece inclinar-se para a segunda possibilidade. E, ainda hoje em dia, a formidável proliferação dos estudos benjaminianos parece não ter resolvido por completo essa dificuldade. Por exemplo, ainda existe tensão entre aqueles que acham justificadas as restrições de Adorno aos textos sobre Paris (a negligência da "superestrutura" ou da "mediação do global") e aqueles que, como Maurice de Gandillac, acham que Adorno era incapaz de captar a "significação essencial" do texto. Sem dizer, com isto, que M. de Gandillac se limita a uma compreensão "teológica" de Benjamin.
O grande mérito de "História e Narração em Walter Benjamin", de Jeanne Marie Gagnebin (que a Perspectiva está lançando este mês) consiste justamente em arrancar a leitura de Benjamin dessa inquietante alternativa. Não se trata de fazer a leitura trilhar alguma via média e pacífica nem de anular os termos em tensão.
Aqui, a leitura de Benjamin é acompanhada por uma reflexão crítica sobre esta polêmica encarnada na vasta bibliografia (até a mais recente) que a exprime. Só isto já seria precioso para o leitor brasileiro, não-familiarizado com a literatura crítica alemã ou francesa atual. Mas, é claro, mais importante do que a atualização que permite é a dupla tarefa realizada por J. M. Gagnebin: mostrar a originalidade de Walter Benjamin no "álbum de família" dos "amigos materialistas da dialética" e, sobretudo, desnudar o nervo mais secreto dessa originalidade (através do exame do uso das noções de narração e de história) numa filosofia da linguagem e da temporalidade.
No mínimo, digamos, tarefa complicada. Mas, justamente, é nesse limite da maior dificuldade que parece sobressaltar a proeza da autora –é só no elemento da filosofia que podemos reconstituir, caco a caco, a unidade do vaso original ou a unidade (sempre em crise) da obra de Walter Benjamin. O livro comporta quatro capítulos, consagrados sucessivamente aos temas da origem, da alegoria, do fim da narração, da narração de si mesmo, para desembocar numa conclusão onde todos os fios analíticos convergem na idéia de cesura, como essencial à compreensão da história presente.
É claro que o espaço de uma resenha é estreito demais para que possamos dar idéia da riqueza deste itinerário hermenêutico. Mas é possível, ao menos, sugerir de maneira esquemática a eficácia de seu desempenho. Digamos que cada capítulo, consagrado a tema diverso, mantém a mesma estrutura –e que essa estrutura mimetiza a estrutura mesma da escrita e do pensamento de Walter Benjamin. Arrisquemos uma fórmula (já antecipando nosso alvo): a estrutura de uma dialética por assim dizer paralisada na tensão irresolúvel entre o irremediável e a esperança. Dialética anti-hegeliana, à maneira de Kierkegaard e dos "existencialistas" em geral? Talvez, mas o próprio Adorno, mais hegeliano que seu amigo (embora menos que Lukács), já invertia a proposição hegeliana }Só o Todo é a Verdade, traduzindo-a por }O Todo é o Não-Verdadeiro. E, de outro lado, parece que Benjamin não conseguiu se entusiasmar pelo bom Chestov.
Trata-se, portanto, de descrever uma figura muito particular da dialética. Tarefa que J.M. Gagnebin enceta desfazendo equívocos quanto ao uso benjaminiano da idéia de origem. Ao contrário de que alguns pensam, o elogio da origem não significa necessariamente o império da nostalgia ou a busca do paraíso perdido ou, ainda, a saudade do comunismo primitivo. A origem explode no presente ou salta sobre ele, vinda do futuro. A linguagem adâmica, a ser reconquistada contra Babel, jamais foi um fato –seria talvez um possível, para o trabalho do pensador, do poeta ou do revolucionário. Subversão da linha temporal que é cúmplice das subversões linguística e política (Benjamin é inimigo da concepção do tempo como "meio homogêneo e vazio" e espera que os revolucionários, atirando nas torres municipais, parem "o tempo dos relógios" e do trabalho –como Jeanne Marie não tem a simpatia que os frankfurtianos nutriam por Bergson, não se demora nessas alusões).
A mesma subversão da linha temporal (agora na forma da relação vertical entre o eterno e o efêmero), é descrita na fenomenologia do drama barroco que culmina (simplifico brutalmente) nas análises de Baudelaire e do advento da modernidade. Aqui, e contra a tradição clássico-romântica alemã, o drama é mobilizado contra a tragédia, a alegoria contra o símbolo e a história contra o mito.
Não é nostálgica ou elegíaca, também, a análise do fim do Narrador ou da Narração. Leitor, é claro, de Tõnnies, Benjamin não lamenta o fim da sociedade tradicional. Com Kafka, digamos, emerge uma forma de "não mais contar" que é de algum modo mais "verdadeira" do que a narrativa tradicional e que se ancora naquele ponto do presente em que ele se abre para o futuro. Decididamente, Benjamin estava aí muito longe de Lukács.
Também não é nostálgica a rememoração da infância. O contraponto é certamente Proust –mas a "busca do tempo perdido" ou da infância berlinense não pode culminar num resgate do passado que nos leve para além do tempo. Com Proust, mas contra Proust, a narrativa que o sujeito faz de si mesmo ou de sua infância não aspira a nenhum fechamento definitivo, muito menos na forma fetiche da obra de arte. O sujeito de alguma maneira se fratura abrindo uma brecha por onde pode emergir o Outro: –o Messias, a Revolução.
Em todos os casos a linguagem e o tempo, por essência, não podem completar-se como uma bela totalidade. Não há expressão sem aquilo que não é exprimível, e não há temporalidade sem suspensão (no instante fulgurante e descontínuo) do tempo. Retornamos, assim, a nosso início: J.M. Gagnebin não busca uma via média entre materialismo e teologia. Tampouco nega oposição entre esses pólos. Pelo contrário, mostra como a oposição, ela mesma, é o centro e o eixo do pensamento de Benjamin.
Sem essa "contradição", tudo desmontaria. Contradição, talvez, menos no sentido hegeliano do que no sentido heraclitiano da tensão máxima a ser imposta entre o arco e a lira. E, se assim é, o livro de Jeanne Marie Gagnebin parece atender a intenção mais profunda do filósofo. Lembro aqui uma carta de 6 de agosto de 1939, onde, defendendo sua leitura de Baudelaire contra Adorno, Benjamin afirma que seu texto é ilegível para quem não tem olhos de ver o ponto de fuga para o qual convergem as linhas aparentemente divergentes de seu pensamento. Ponto de fuga que é o objeto próprio do livro em tela.

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