São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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A grande aventura de 'Chatô'

CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA

Em 1966, contratado para escrever um livro sobre Getúlio Vargas, entrevistei diversas vezes o industrial e ex-jornalista José Maciel Filho, autor do texto final da carta-testamento de Vargas. Submeti a ele o título que me haviam sugerido, "Vargas, o Rei do Brasil" e com o qual eu vinha trabalhando até então. Maciel discordou, com certa irritação. – "Não, de jeito algum. Rei do Brasil só teve um: chamou-se Percival Farquhar".
Quando soube que Fernando Morais estava escrevendo a biografia de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo sob o título "Chatô, o Rei do Brasil", achei curiosa a coincidência. Seriam três os reis do Brasil: Vargas, Farquhar e Chateaubriand. Mais um e poderíamos formar o baralho com o qual jogamos uma das mais complicadas e importantes rodadas do pôquer nacional.
E logo no início do livro encontrei o misterioso personagem que Maciel Filho considerava como o verdadeiro dono do país, e na verdade teria merecido o título de rei se não fosse ele, Farquhar, o ponto de partida para o verdadeiro rei que seria Assis Chateaubriand. O Brasil moderno começou cem anos depois da independência, em 1922, ano em que Farquhar não conseguiu evitar a posse de Artur Bernardes, obrigando-o a governar sob estado de sítio e tendo, como advogado e panfletário, o jovem jornalista que abandonara a cadeira de Direito Romano em Recife para se tornar um dos homens mais temidos e odiados de seu tempo. Estranhamente, também um dos mais admiráveis.
A acusação mais frequente que os contemporâneos faziam a Chateaubriand era a da venalidade. Em certo sentido, ele passaria à história como o exemplo mais bem-sucedido do jornalista que alugava sua pena (no caso dele, o toco de lápis) em defesa dos pontos de vista de quem pagava mais. Em muitos lances de sua tumultuada aventura a acusação era procedente, mas não na gestação de sua personalidade pública, de sua malignidade e, ao mesmo tempo, de sua grandeza.
Homem da Renascença deslocado em nosso século, nascido no sertão paraibano e não em Florença, ele encontrou em Farquhar (e Farquhar teria encontrado nele) a aliança perfeita para a defesa de uma mesma concepção econômica da sociedade humana, da mesma visão de mundo. Farquhar era apenas um capitalista em exercício, não ia além disso. Chateaubriand era bem mais complexo, queria mais do que o lucro. Queria também o poder e trombou de frente com o outro rei da época, Getúlio Vargas, que não era exatamente um capitalista e, em muitos sentidos, teria em Chatô o seu clone.
Prodigioso desde a adolescência, Chatô aprendeu alemão e aos 17 anos já lera Nietzsche. Vargas era um comtista de segunda mão, herdara de Júlio de Castilho a admiração por Comte. A severidade de um contrastava com a leviandade do outro, mas ambos tinham em comum não apenas o cenário em que se movimentavam, mas o olhar telescópico sobre o seu tempo.
Através da chantagem econômica e moral, Chatô ergueria um império e traria para o Brasil a televisão e uma apreciável coleção de arte. Através de uma chantagem política, Vargas traria para o Brasil a nossa primeira usina siderúrgica, aproveitando-se de uma situação delicada dos aliados durante a 2ª Guerra Mundial.
Nada de admirar que os dois soberanos tantas vezes estivessem no mesmo barco e tantas vezes em campos opostos. Ambos alteraram leis em benefício próprio. E como eram (ou se consideravam) acima do bem e do mal, chegaram a ocupar a mesma cadeira na Academia Brasileira de Letras, um sucedendo o outro.
Duas grandezas mereciam dois finais trágicos: Vargas suicidou-se, teve o desfecho lógico de sua "weltanschauung" (visão de mundo). Chatô, como bom clone, decupou a tragédia do fim em alguns anos de paralisia física que poupou sua lucidez –uma lucidez caótica que absorvia o ridículo, mas o absolvia. De qualquer forma, é dele a biografia mais anedótica do nosso tempo e Fernando Morais a captou bem, enriquecendo um gênero literário que, pouco a pouco, atinge entre nós o profissionalismo.
Tem ele a habilidade da pesquisa e a eficiência da linguagem. Seu livro anterior, a biografia de Olga Benário Prestes, está sendo contestado por pesquisas mais recentes, pode ser acusado de parcialidade em favor de sua heroína, mas teve o mérito de trazer a debate um dos períodos mais cruéis de nosso recente passado. Seu outro livro de sucesso, "A Ilha", enquadra-se na literatura de propaganda e padece das anomalias comumente encontradas em panegíricos. Lembra, guardadas as proporções da época e do assunto, "O Mundo da Paz", de Jorge Amado, sobre a ex-União Soviética.
Em "Chatô, o Rei do Brasil", temos o descompromisso do autor com o seu biografado. Até onde a isenção de um estudioso pode ir, o autor não parte de nenhum pressuposto, não insinua qualquer tese, não ataca nenhum objetivo que não o de pura e eficientemente buscar o seu personagem tal como ele foi, tal como atuou em sua vida e em seu tempo.
Fernando Morais evitou a arapuca do perfil –que muitos autores não conseguem ultrapassar, sobretudo quando são jornalistas. O Chateaubriand que resulta de seu alentado livro (732 páginas) não tem a precariedade do "approach" psicológico, a facilidade da abordagem impressionista. Ele levanta o seu personagem fazendo uso moderado da imaginação, armando o quebra-cabeças com as pequeninas peças que coletou em sete anos de trabalho.
Evitou a chatice do pesquisador acadêmico, que se resume em juntar dados e depoimentos, arrumá-los em ordem cronológica e escorá-los em erudita bibliografia. Um exemplo que vem à lembrança: a biografia de outro monstro da mesma época de Vargas e Chatô, o até hoje polêmico Carlos Lacerda, que está merecendo de um brasilianista de renome, John W.F. Dulles, uma biografia insossa, sem brilho e, embora honesta, desprovida do charme a que o controvertido personagem tinha direito.
O filão aberto no mercado editorial brasileiro, o das biografias que abrangem genericamente o mesmo período, tem no livro de Fernando Morais a continuação do sucesso de Ruy Castro com "O Anjo Pornográfico". São obras de jornalistas-escritores, donos de linguagem enxuta e precisa, calejados na pesquisa e no "feeling" do texto jornalístico –que em absoluto conflita ou contradiz o texto literário.
Não é difícil prever que, tal como a onda Nelson Rodrigues criada por Ruy Castro, o "macaco elétrico" sob o qual Chatô às vezes se escondia merecerá a promoção a eletrônico –ele que trouxe o universo eletrônico para nosso cotidiano.
Para finalizar, acentuemos que Fernando Morais em nenhum momento procura absolver ou justificar o seu personagem. Tampouco o condenar. Pela massa de episódios, de datas, nomes e sequência histórica, é possível que haja equívocos no volumoso contexto de seu texto. Mas dele ninguém poderá negar o mérito de ter levantado em carne, osso, sangue, grandeza e miséria, um dos personagens mais curiosos de nosso tempo. Um homem que talvez não tenha sido o rei do Brasil, mas foi seguramente o mais espalhafatoso arlequim que não serviu apenas a dois amos, mas a vários.
E como nenhum outro arlequim, foi estranhamente servido por pierrôs e colombinas de nossa nem sempre divertida comédia sem arte.

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