São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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A invenção da história

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

As pessoas hoje buscam raízes, devido à rapidez das mudanças
A fronteira entre história e literatura está aberta, como no séc. 17
O historiador inglês Peter Burke desenvolverá a partir deste mês, no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, em São Paulo, o projeto de pesquisa "Duas Crises da Consciência Histórica". Na entrevista a seguir, concedida por fax de Cambridge, onde é professor de história cultural, ele fala sobre as fronteiras entre história e ficção.
Autor de clássicos como "Cultura Popular na Idade Moderna", "Veneza e Amsterdã" e "A Fabricação do Rei", Burke comenta técnicas literárias e estilos narrativos para comparar o trabalho do historiador e o do ficcionista.

Folha - O sr. poderia explicar o trabalho de pesquisa que desenvolverá na USP?
Peter Burke - Durante meu ano na USP trabalharei num estudo de duas "crises da consciência histórica", uma comparação entre a situação "pós-moderna" de hoje e a da Europa no final do século 17 e início do 18, quando alguns céticos questionaram a pretensão dos historiadores de conhecer o passado. Estou interessado tanto nas semelhanças como nas diferenças entre as duas crises, e também na questão de se podemos aprender alguma coisa com a saída encontrada para a crise do século 17, com o tipo de resposta que os historiadores deram aos céticos.
Folha - O sr. disse, numa entrevista de 1991, que vê os livros de história como um gênero literário. Poderia explicar melhor essa idéia? O sr. se refere apenas aos grandes historiadores-escritores, como Tucídides, Gibbon, Michelet, ou a qualquer texto de história?
Burke - Continuo considerando a escrita da história um gênero literário, ou um feixe de gêneros, que, assim como o épico, o lírico e o dramático, têm sua própria retórica, suas próprias convenções de apresentação. Não quero dizer com isso que todos os historiadores são conscientes dessas convenções, e menos ainda que todos eles escrevam bem, embora alguns historiadores atuais de fato escrevam bem e estejam muito conscientes das questões de retórica e estilo.
Folha - Entre os que escrevem bem hoje, que historiadores o sr. citaria (além do sr., é claro)?
Burke - Em francês, acho que Georges Duby e Le Roy Ladurie escrevem muito bem; em italiano, Carlo Ginzburg; em inglês, o falecido Edward Thompson e Simon Schama; e em sueco, Peter Englund, autor de "Poltava" (1988), uma narrativa da derrota dos suecos para os russos que causou uma justa sensação literária em seu próprio país.
Folha - Entre os historiadores brasileiros, vivos e mortos, quem o sr. admira? Por quê?
Burke - Entre os historiadores brasileiros já mortos, admiro em primeiro lugar Gilberto Freyre, porque desenvolveu um novo tipo de história sociocultural décadas antes que esse tipo de história fosse levado a sério na Europa ou nos Estados Unidos, e Sergio Buarque de Holanda, por seu alcance, discernimento e poder de síntese. Ambos também, naturalmente, escreviam muito bem. Entre historiadores mais jovens ainda em atividade, fiquei muito impressionado por dois livros de Sidney Chaloub, "Trabalho, Lar e Botequim", e, mais recentemente, "Visões da Escravidão".
Folha - Os historiadores da corrente dos "Annales", à qual o sr. dedicou um livro, certamente contribuíram para estabelecer um novo padrão literário para os livros de história. Em que consistiu a contribuição principal dos "Annales" nesse terreno?
Burke - Os estilos dos historiadores dos "Annales" são muito diferentes entre si, mas coletivamente a sua conquista foi criar uma forma alternativa à narrativa tradicional: a divisão de livros em uma parte referente à estrutura e uma parte referente à "conjuntura" (a estrutura tripartite de Braudel em seu "Mediterranée" foi mais admirada do que propriamente imitada).
Folha - Quais são os limites entre a história e a ficção, se é que existe algum?
Burke - Acho que existe uma grande diferença entre história e ficção (no Ocidente, a partir de Tucídides), com escritores de história se permitindo fazer apenas certos tipos de afirmação, enquanto os escritores de ficção têm mais liberdade. Mas não acho que a linha divisória entre história e ficção seja tão rígida como as fronteiras entre os Estados modernos, com arame farpado e soldados armados. Existe uma larga área de fronteira entre as duas, que muda de lugar de uma época para outra. Hoje, como no período em torno de 1700, a fronteira está relativamente aberta. Para tomar dois exemplos de língua inglesa, é difícil saber se se deve descrever o "Journal of the Plague Year", de Daniel Defoe, ou "A Arca de Schindler", de Thomas Keneally, como ficção ou como o que os bibliotecários e livreiros chamam de "não-ficção".
Folha - O sr. vê o historiador como uma espécie de ficcionista? Em que sentido?
Burke - Assim como os autores de ficção –vamos chamá-los "romancistas", por conveniência–, os historiadores frequentemente contam histórias ("stories"), embora nem sempre. Minha preferência pessoal é por escrever uma forma de história que é mais próxima do ensaio que do romance. Os historiadores não inventam suas histórias ("stories"), mas descobrem-nas, embora sua escolha de temas brote de seu próprio tempo.
Quando é o caso de escreverem suas histórias, os historiadores precisam manter-se colados à evidência, mas precisam também usar sua imaginação, especialmente para interpretar os "fatos" brutos. Eles também usam recursos literários (metáforas, diálogos, modos de aumentar o suspense etc.). Portanto, em alguns aspectos os historiadores estão mais próximos dos romancistas; em outros, estão mais distantes.
Folha - O sr. consideraria "Os Sertões", de Euclides da Cunha, um exemplo de livro em que aquela fronteira (entre ficção e história) é pouco nítida? Que outros exemplos o sr. citaria?
Burke - Vejo, de fato, "Os Sertões" como um bom exemplo de "gêneros misturados", embora seja um livro menos ficcional que "A Guerra do Fim do Mundo", de Mario Vargas Llosa. Bons exemplos são também as obras de Defoe e Keneally que citei. Dois interessantes exemplos italianos recentes, de lados opostos da fronteira, são "O Nome da Rosa", de Umberto Eco (essencialmente um romance, mas com muitas passagens de escritores medievais enterradas nele) e "A Biblioteca Desaparecida", de Luciano Canfora (um relato da destruição da biblioteca de Alexandria escrito por um historiador, mas inspirado parcialmente em Eco e Borges).
Folha - Como o sr. vê o recente "boom" de romances históricos? O sr. acha que eles alimentam o apetite dos leitores por narrativas com uma sequência cronológica, uma vez que a ficção moderna não fornece mais esse tipo de coisa?
Burke - Se existe um "boom" de romances históricos (que têm sido populares há muito tempo, pelo menos na Inglaterra), penso que ele tem mais a ver com um interesse pelo passado do que por uma carência de histórias com sequência cronológica. Afinal, muitos romances ainda contam esse tipo de história; só uma minoria de romances de vanguarda rompe com essa convenção.
Incidentalmente, alguns historiadores estão fazendo experiências com sequências não-cronológicas, contando histórias para trás, a partir do presente, ou introduzindo flashbacks.
Folha - Os livros de história –ou ao menos alguns deles– também parecem ser relativamente populares hoje em dia. O sr. acha que os leitores contemporâneos recorrem a eles como um meio de recompor o sentido de um mundo em rápida transformação? Ou seria uma espécie de nostalgia?
Burke - Parece que existe de fato um "boom" de história, no sentido de que uns poucos historiadores, alguns deles historiadores acadêmicos sérios, atraem agora um público amplo. Não explico isso como nostalgia, se com isso se quer dizer uma preferência por viver no passado. Uma explicação poderia ser "turismo no tempo", um gosto pelo exótico, por viagens sem sair da poltrona a períodos remotos como se fossem lugares remotos. Concordo com você que muitas pessoas recorrem à história, sobretudo a sua própria história, para buscar suas raízes, e elas precisam disso mais do que nunca por causa da rapidez das mudanças sociais.
Folha - Existe em inglês uma distinção entre "history" e "story". Em português havia uma distinção análoga até algumas décadas atrás, entre "história" e "estória", mas hoje a única palavra para designar as duas coisas (relato histórico e narrativa ficcional) é "história". As duas palavras, de todo modo, parecem ter a mesma origem. O sr. tem alguma idéia de quando e como elas se separaram e se tornaram conceitos distintos?
Burke - Essa interessante questão exigiria uma resposta diferente para cada língua. Em inglês, em todo caso, a palavra "history" ainda podia se referir a um romance no século 19, muito tempo depois da distinção entre dois tipos de história ("story"), a ficcional e a factual. Em alemão houve uma mudança de "Historie" para "Geschichte" no final do século 18 que me parece significativa.
Folha - Seu livro mais recente, "A Fabricação do Rei", sobre Luís 14, trata das "técnicas de publicidade" usadas com propósitos políticos. O sr. poderia comparar as técnicas publicitárias usadas no tempo de Luís 14 com aquelas utilizadas pelos políticos de hoje?
Burke - É no que diz respeito a técnicas (apesar das diferenças entre os meios eletrônicos de nosso tempo e os meios do século 17, tais como medalhas, tapeçarias, pintura) que eu vejo as mais próximas semelhanças entre a propaganda política de então e a de agora. O público é muito diferente (os fabricantes da imagem de Luís 14 se dirigiam à elite, não ao povo –que não tinha direito a voto e devia obedecer, sem necessidade de persuasão– e portanto atingiam milhares de pessoas, não milhões). Mas as técnicas de "heroificação" são semelhantes –esconder o fato de Luís 14 não ser alto, atribuir a ele pessoalmente os acertos de seus ministros, artistas ou exércitos, criar fatos para os "media" e "esquecer" as ações desabonadoras.
Folha - Numa entrevista que me concedeu em 1991 o sr. disse que cogitava a possibilidade de fazer uma pesquisa sobre o Carnaval brasileiro, com o objetivo de compará-lo ao Carnaval de Veneza. Podemos ainda aguardar esse trabalho?
Burke - Desde que você me entrevistou eu li o novo livro sobre Carnaval brasileiro de Maria Isaura Pereira de Queiroz, uma socióloga com um bom sentido histórico que já fez o que eu pretendia fazer. Por isso, estou procurando um tema diferente. Ainda me sinto atraído pela comparação, mas poderia ser melhor fazer uma ampla comparação e contraste entre o Carnaval na Europa e nas Américas (Trinidad, Nova Orleans etc.). Antes de decidir, acho que vou esperar até 1995 –minha primeira chance de participar de um Carnaval brasileiro.

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