São Paulo, segunda-feira, 12 de setembro de 1994
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Ainda temos muito tempo para perder

MARCELO PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Parti por aí, com pouca coisa, sem prazo para voltar, sem obrigações, obrigado meu irmão. Deixei o Brasil nas suas mãos. Tudo bem?
Primeira escala, escalei em Los Angeles. Agora, resido em São Francisco, onde os meteorologistas não se cansam de repetir: "Amanhã, sol, e depois, sol, sol e só sol..."
O que vem a seguir? Talvez eu me mude para Roma, talvez Porto, talvez uma cidade sem aeroporto. Vou por aí, com a alma seca, seguindo o sol, só ou não, chuva e trovão, arar a horta e esperar nascer alguém, ou talvez alguém que já fui.
Já fui um hippie sem vergonha tempos atrás e não me envergonho disso, cujo único lazer era todo lazer e o não-lazer não existia. Existe tempo para a contemplação. Tem alguém aí? Alguém ainda respira? Alguém ainda vive? Há, e muito, tempo a perder.

Larguei uma carreira de fama, sucesso e badalação, e me entrego aos braços da boa literatura, do ar puro, do pôr-do-sol e da imaginação.
A fama é uma doença com cura. Muitos a querem a qualquer tostão. Eu a quis, e escapei por um triz. "Desilusão, desilusão..." Uma fonte de água pura existe, e não está na dança da solidão.

A verdadeira liberdade é não ter opinião. Não sou a favor, nem contra, não aposto no vermelho, nem no par. Em parte, torço pelo empate, e de religião, mal sei o beabá.
A fama necessita de posições: "caro escritor bem sucedido, o que pensa do apocalipse, da vida após a morte, da existência de Deus, e da geração aspirina, que aspira a um palmo do nariz? O que tem a dizer de todas as guerras? Filme? Cor? Número? Enlatados dão câncer? O quem tem a declarar?".
Nada, doutor. Trago um colar no peito, uma aliança no dedo, um passaporte carimbado, esta caneta, este papel, nariz, olhos e boca, e ouço tudo. Cuidado com o que diz.

O Brasil está em boas mãos. Adeus ministro, acabou o dia do sou o tal, e do vício do mandachuva. O Brasil só traz felicidade. Que reinem todas as cores dos orixás. O sol brilha no céu da pátria neste instante. Você está no caminho certo. Saravá.

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