São Paulo, terça-feira, 13 de setembro de 1994
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A agricultura segundo FHC

JOSÉ ELI DA VEIGA

É falso atribuir virtudes aos mais modernizados e vícios aos que não usam tecnologias modernas
O capítulo agrícola do programa de Fernando Henrique Cardoso está baseado num equívoco. Mesmo que não venha a ter consequências práticas, constitui uma importante referência sobre o imaginário que prevalece entre as elites dirigentes, já que foi elaborado pelas mais expressivas lideranças patronais do agribusiness e por experientes economistas do atual governo de empresas de consultoria e das universidades.
Depois de mencionar o caráter estratégico do setor e os milagres que tem conseguido realizar, o texto enfatiza, como ponto de partida de seu diagnóstico, a seguinte dicotomia:
"Enquanto encontramos segmentos que utilizam padrões tecnológicos dos mais modernos, com altas taxas de produtividade, gerando renda e emprego e promovendo uma agricultura sustentável, observamos outras realidades que promovem a reprodução de pobreza, com baixa produtividade, incapacidade de gerar empregos, baixa renda e degradação ambiental. Esta realidade coloca estes segmentos à margem do mercado ou incapacitados para produzir renda."
É dupla a inconsistência dessa passagem. Em primeiro lugar, não é preciso ter muita vivência de campo para perceber que essa visão dualista não corresponde à diversidade do setor. Todos os estudos sobre o processo de modernização agrícola indicam, ao contrário, um variado leque de efeitos dinâmicos que não permitem opor de forma tão ingênua segmentos "modernos" e "não-modernos".
Os principais problemas da agricultura brasileira referem-se muito mais à diversidade dos impactos causados pelo caráter truncado da modernização, do que à persistência de segmentos que dela teriam ficado imunes. Se hoje existem milhões de estabelecimentos agrícolas marginalizados, isso se deve muito mais à natureza do próprio processo de modernização, do que à sua suposta falta de abrangência.
Em segundo lugar, é simplesmente falso atribuir todas as virtudes aos segmentos mais modernizados e todos os vícios aos que, por inúmeras razões, não chegaram a adotar tecnologias consideradas modernas.
E essa maniqueísta alocação de valores chega às raias do absurdo quando o texto citado afirma que os segmentos mais modernos estariam promovendo uma agricultura sustentável, enquanto os demais seriam os responsáveis pela degradação ambiental.
Qualquer pessoa minimamente informada sobre os impactos ambientais dos padrões tecnológicos deste final de século 20 só pode ficar assustada com o tamanho do disparate.
Enfim, se nossa agricultura pudesse ser entendida por meio de um dualismo tão simplista, será fácil formar um amplo consenso sobre os principais problemas e as medidas prioritárias para atacá-los.
No entanto, a realidade do agribusiness brasileiro é infinitamente mais complexa, e só um esforço analítico sem preconceitos poderá gerar a política setorial que a sociedade brasileira necessita.
Uma útil sugestão aos futuros formuladores da política agrícola do próximo governo –seja ele presidido por FHC, Lula ou outro)– é tomarem conhecimento das pesquisas de campo que adotaram o chamado "enfoque sistêmico", isto é, a análise empírica dos principais sistemas de produção de uma determinada região agrícola.
Infelizmente não existem muitas, pois essa metodologia tem sido assimilada muito vagarosamente por aqui, apesar de ter sido amplamente divulgada pela Fao (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação). Mesmo assim alguns estudos (ver por exemplo: Assesoar/Deser/Iapar, "Caracterização e diagnóstico dos sistemas de produção do Sudoeste do Paraná", 1994, (mimeo), e Dudermel, Thierry, "Les enjeux d'une agriculture en crise", Tese de Doutorado em Agronomia, Institut National Agronomique Paris-Grignon, 1990) indicam com clareza a existência de um expressivo número de produtores que não se encaixam em nenhum dos dois pólos do dualismo proposto pelo programa FHC.
São agricultores que se encontravam em graus intermediários de modernização quando foram atingidos pelo colapso do padrão de política agrícola forjado pela ditadura militar.
Esses segmentos, que não deixaram de adotar parte das inovações tecnológicas que lhes foram oferecidas, mas também não chegaram a se consolidar como empresas, têm muito potencial para se expandir desde que recebam atenção especial das políticas governamentais que afetam o setor agropecuário.
Mas nada disso acontecerá se forem confundidos com a imensa massa de estabelecimentos marginalizados e, muito menos, com o reduzido número de propriedades indiscutivelmente modernas.
Por falta de capacidade de autofinanciamento, pela exiguidade e fraqueza de suas terras, pela falta de capacitação de seus recursos humanos, ou por ser vítima do forte viés urbano das políticas públicas, uma importante fatia intermediária da agricultura familiar está em perigo.
A identificação dos agricultores que podem ser enquadrados nessa zona de transição só poderá ser feita por meio da multiplicação de estudos empíricos que utilizem a citada abordagem sistêmica. Mas não é arriscado admitir, para fins exploratórios, as estimativas que aparecem no quadro.
O grande desafio atual é a criação de instrumentos que gerem novas oportunidades de expansão e/ou reconversão produtiva para o maior número possível de produtores que se encontrem nessa categoria transitória.
Ficando apenas no universo dos produtores familiares, pode-se estimar que cerca de 2,5 milhões de estabelecimentos pertençam a essa categoria "de transição".
Esse é o público alvo que deve ser atendido prioritariamente por uma nova política agrícola, mas que corre o risco de virar suco se for diluído nesse vago dualismo entre "os modernos" e "o resto".

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