São Paulo, quarta-feira, 14 de setembro de 1994
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Arts Florissants resgata artifícios de Charpentier

Grupo equilibra dor e ornamentação do barroco francês

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Um cortesão perfeito é capaz de controlar seus gestos, seus olhos, sua expressão; ele é profundo e impenetrável; está acima de qualquer injúria; sorri aos inimigos, controla seu ânimo, disfarça suas paixões, mascara seus interesses e pode tanto falar quanto agir em desacordo com suas opiniões." Este é o retrato pintado por La Bruyère, em 1688, do que ele chama de "cortesão perfeito". É a versão desencantada, do mais suntuoso reinado que a França jamais conheceria, o regime de Luís 14 –que tem na música de Marc Antoine Charpentier (1643-1704) seu representante por excelência.
Desde sua fundação, em 1979, Les Arts Florissants vem se concentrando de modo especial sobre a música de Charpentier. Em seu concerto de segunda-feira, no Cultura Artística, o conjunto apresentou duas de suas óperas de câmara: "Le Plaisir de Versailles" e "La Descente d'Orphée aux Enfers". Como divertimentos de corte, as duas correspondem ao retrato de La Bruyère, que não estava falando só de pessoas, mas de livros e obras de arte também. Mas nesse universo, onde "nada é verdade, tudo é artifício", como escreveu pouco mais tarde Batteux, onde a arte é o domínio "do imaginário, do fingido, do copiado e do artificial", um abismo se abre a cada compasso e o mundo parece precariamente equilibrado. Não é por acaso que o próximo século vai nos dar o romance psicológico.
Caminhar nesta linha tênue, entre a expressão mais dolorosa e a superfície mais ornamental, é um exercício para poucos. É um prazer raro, também, e a música barroca francesa deve ser, tudo somado, um dos nichos mais inacessíveis, mas insubstituíveis do repertório. E ninguém se iguala a Les Arts Florissants na interpretação dos franceses.
"Les Plaisirs" é uma frivolidade, de caráter alegórico; "La Descente" é quase uma tragédia. Quem saiu no intervalo perdeu o ponto alto do ano, o lamento cromático por Orfeu, no final do ato 1. Sem adereços, e com o mínimo de movimentação, Les Arts Florissants faz a encenação mais artificial e mais convincente que se pode imaginar. Cantores e instrumentistas são mestres naturais da ornamentação e daquela outra coisa insondável, que os franceses chamavam de "go–t" (gosto): entender, de dentro, a música.
Regidos do cravo (e organeto) por William Christie –o primeiro americano a dar aulas como professor titular no Conservatório de Paris– Les Arts Florissants é um conjunto só de virtuoses. O conjunto todo tem a leveza e a grandeza um tanto nostálgica e um tanto melancólica que é a marca do cortesão Charpentier. No segundo concerto, terça-feira, dedicado às obras sacras, Les Arts Florissants prometia mostrar o que um Charpentier não faz com Deus.

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