São Paulo, quarta-feira, 14 de setembro de 1994
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Exposição faz tábula rasa da arte

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Para o argentino Carlos Basualdo, 30, curador da exposição "Das Américas", que reúne seis artistas estabelecidos nos Estados Unidos –e, na maioria, americanos–, "a transculturação é um fenômeno cada vez mais comum".
Daí o título "Das Américas": "É uma categoria que se presta mais a operações reflexivas; é mais inclusiva que 'norte-americano' ou 'latino-americano"', diz.
Na palestra que deu na segunda-feira, acompanhado por dois dos artistas (Peter Halley e Meyer Vaisman), Basualdo tentou puxar o fato de todas as obras na exposição serem de certa forma críticas do mercado e do discurso da arte contemporânea criado nos grandes centros para uma discussão sobre "o centro e as periferias".
"Houve duas grandes tendências nos anos 80: o neo-expressionismo e a arte neoconceitual. O neo-expressionismo foi um momento neo-imperialista para os países subdesenvolvidos. Já a arte neoconceitual abriu caminhos que se tornaram muito produtivos nos anos 90", disse à Folha.
Os seis artistas selecionados para a exposição (Alfredo Jaar, Roni Horn, Meyer Vaisman, Richard Prince, Mike Kelley e Peter Halley) são representativos dessa última corrente, com destaque e reconhecimento internacional.
Ao tentar enquadrá-los todos dentro da problemática do centro (no caso, Nova York), das periferias (no caso, a América Latina –Jaar é chileno e Vaisman, venezuelano) e da "transculturação" das identidades, Basualdo desvia a atenção da essência dessa arte.
O mais curioso é que, para atacar os cânones da arte contemporânea (sobretudo americana), esses artistas usam a tábula rasa como arma. Dentro da lógica da arte moderna e contemporânea que atacam, seus trabalhos seriam, no geral, um retrocesso.
Halley, por exemplo, pinta telas onde as formas geométricas não são mais pura abstração, mas a representação de celas, prisões, chips de computadores etc., a irracionalidade e o caos dos sistemas de comunicação numa era pós-industrial.
"Nos EUA, a crítica costumava dizer que o uso dos espaços é formal e não social. Comecei a ler Foucault e isso me ajudou a validar minhas próprias intuições de que a forma tem uma origem social. O que me interessava era como as celas e os canais eram uma representação de como o espaço é usado em nossas sociedades", diz.
Essa tábula rasa dos princípios que norteavam a arte moderna (Halley transformando a abstração em representação esquemática etc.) chega, sob a influência do multiculturalismo e da militância das minorias nos EUA, a um certo infantilismo político, que pode ser visto tanto no trabalho de Mike Kelley como no de Vaisman ou Richard Prince.
Kelley é o líder de uma tendência que consiste em trazer à tona os fantasmas (sobretudo sexuais) recalcados na infância e adolescência, como uma forma de política. Seus bichinhos de pelúcia com diálogos pornográficos são representativos dessa nova idéia fluida e primária de militância política.
Um pouco desse infantilismo também está presente nos trabalhos –por vezes, hilariantes– de Vaisman. Sua série de perus empalhados e fantasiados são o melhor exemplo dessa revolta insolente do humor contra as regras de boas maneiras da arte contemporânea. Em Prince, essa insolência chega ao ponto de não se saber mais onde está o trabalho do artista, já que ele apenas reproduz, sem interferências, clichês da publicidade e do consumismo.
É essa nova idéia de "arte crítica e política" como autobiografia, a partir da experiência pessoal –racial, sexual, social– do artista, que parece assolar a produção nos EUA, com algumas obras interessantes e uma boa dose de superestimação.
"Ao longo de 14 anos, fui me dando conta de que essas formas geométricas são também auto-retratos e não apenas representações sociais. Há um humor em mostrar um homem como uma superposição de caixas", diz Halley.
Os seis artistas selecionados para "Das Américas" –exposição organizada por Isabella Prata e a galeria Luisa Strina– são sem dúvida representativos da melhor parte dessa nova "arte crítica". Mas se a questão essencial é a crítica ao discurso da arte contemporânea e ao mercado, o problema agora é saber até onde esses artistas estão dispostos a ir, já que continuam participando com sucesso de ambos.
Exposição: Das Américas
Artistas: Alfredo Jaar, Roni Horn, Meyer Vaisman, Richard Prince, Mike Kelley e Peter Halley
Onde: Galeria Luisa Strina (r. Padre João Manoel, 974-A, Cerqueira César, zona oeste, tel. 280-2471)
Quando: A partir de hoje, às 19h, até 8 de outubro

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