São Paulo, quarta-feira, 14 de setembro de 1994
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Perigos à vista

ANTONIO DELFIM NETTO

O plano de estabilização que criou o real enfrenta nesta semana o seu maior desafio. Temos insistido, desde o primeiro dia, que um dos artifícios mais bem-sucedidos da introdução da moeda indexada, a URV, foi a conversão e congelamento do salário real pela média do período novembro-93/fevereiro-94.
A partir de março, quando se passou a converter o salário real médio fixado pela URV de cada mês, estabeleceu-se um precário equilíbrio na distribuição de renda. Todos os salários nominais passaram a crescer mensalmente mais ou menos na proporção dos preços. A URV manteve a distribuição da renda real dentro dos parâmetros definidos naquele quadrimestre.
Como agora parece óbvio mesmo para os mais incrédulos, o salário real pode ter caído antes da introdução da URV (pelo enorme aumento da inflação, que passou de 25% para 35% ao mês entre janeiro e outubro de 1993) ou depois da URV (devido à brutal aceleração dos preços na segunda quinzena de junho), mas certamente não caiu pela conversão pela média em URV.
Enquanto os salários nominais acompanharam a evolução da URV, manteve-se a distribuição da renda real na proporção estabelecida pelo congelamento do salário real. É essa a política de renda do Real.
A criação do IPC-r talvez tenha sido um equívoco, cinicamente atribuído pela equipe econômica às "pressões políticas" que não podem ser reveladas, precisamente porque nunca existiram. Mas ela guarda uma lógica coerente com aquela política de rendas: manter em estado cataléptico a distribuição da renda real. De fato, a idéia de corrigir –apenas uma vez–, nas épocas dos dissídios, os salários nominais pelo IPC-r não manterá sequer o salário real médio do quadrimestre novembro-93/fevereiro-94.
Há, aqui, dois problemas. O primeiro é reconhecer que, na média (Ah, se todos fôssemos a média!), a reposição dos 12% para os trabalhadores cujos dissídios se processam agora não deveria dar lugar a nenhum aumento de preços. Ela apenas restabelece a distribuição de renda perturbada pela aceleração dos preços de junho. Em outras palavras, as margens de lucro aumentaram na frente. Agora trata-se apenas de devolvê-las.
O segundo –e é este o problema cuidadosamente ignorado– é que o congelamento do salário real, ainda que necessário ao sucesso do programa do real, estabeleceu uma distribuição arbitrária da renda real. Com ela, provavelmente, não concordam os trabalhadores. É natural, portanto, que os sindicatos organizados, que há longo tempo mantêm uma coalizão com os oligopólios, tentem modificá-la. É de se esperar, também, um inconformismo do corporativismo protegido pelo monopólio estatal.
Uma coisa é certa. Se for rompida a âncora salarial, o programa fracassará com a mesma rapidez do seu sucesso, a menos que se imponha à sociedade uma selvagem recessão, da qual, lamentavelmente, estarão protegidos exatamente os que ajudaram a destruir o Real.
O governo precisa de lógica e firmeza.

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