São Paulo, sexta-feira, 16 de setembro de 1994
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Cineasta encontra alquimia entre ironia e afeto

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Filme: Kika
Produção: Espanha, 1993
Direção: Pedro Almodóvar
Elenco: Verónica Forqué, Alex Casanovas, Peter Coyote, Victoria Abril
Quando: a partir de hoje nos cines Arouche A e Cinearte

"Kika" é a conturbada história de uma maquiadora (Verónica Forqué) casada com um fotógrafo-voyeur (Alex Casanovas) e amante do padrasto deste, o escritor americano Nicholas Pierce (Peter Coyote). Para completar, Kika tem uma empregada lésbica (Rossy de Palma) que a assedia.
Todos assistem ao programa de barbaridades "Lo Peor del Dia", uma espécie de "Aqui Agora" apresentado por Andrea Caracortada (Victoria Abril), uma doida que carrega sua câmera de vídeo na cabeça e sai entrevistando bandidos.
Mais que tudo isso, "Kika" é um filme de Pedro Almodóvar.
Há hoje poucos cineastas cujo estilo se pode reconhecer imediatamente, a partir de uma ou duas cenas. Almodóvar é um deles.
Nesse sentido, "Kika" é a quintessência de Almodóvar: estão ali os personagens bizarros, as cores berrantes, a cenografia kitsch, os boleros românticos e, comandando tudo, o sexo e a morte.
Mas, para além desses elementos evidentes ao primeiro olhar –e que podem constituir uma armadilha à evolução do autor, assim como o estilo "felliniano" aprisionou Fellini–, há no filme uma característica almodovariana mais sutil e difícil de definir: sua personalíssima mistura de gêneros.
Não é que "Kika" tenha partes de comédia alternadas com partes de drama e de filme policial. Tem tudo ao mesmo tempo agora. As cenas mais dramáticas são frequentemente as mais cômicas.
Há uma relação entre essa fusão de gêneros e a postura ética e estética básica de Almodóvar. Para ele, na base de tudo está o desejo (não por acaso, sua produtora chama-se El Deseo). E o desejo, em estado puro, não julga, não discrimina, não compartimentaliza.
O que torna um filme de Almodóvar algo tão estranho e, ao mesmo tempo, tão familiar é uma sensação de que as coisas acontecem meio fora de registro. Há um descompasso entre o texto do diálogo, a expressão dos atores, a trilha sonora, o tom da encenação, a decupagem, a edição.
Uma alquimia entre a ironia que distancia e o afeto que aproxima parece ser o segredo do autor. Tudo é ao mesmo tempo falso, inverossímil (as coincidências absurdas, os exageros melodramáticos) e impregnado de vida.
Há em "Kika" pelo menos duas cenas antológicas: a entrevista do escritor Nicholas Pierce na TV a uma velhinha totalmente fora de lugar (Francisca Caballero, mãe de Almodóvar na vida real) e o estupro da protagonista pelo ex-ator pornô Paul Bazzo (Santiago Lajusticia).
Nesta última cena está o melhor de Almodóvar: o humor, a violência, a ternura e a fúria, tudo condensado numa estranha poesia. É uma sequência crua e, paradoxalmente, sublime, que termina com uma imagem que só Almodóvar pode, milagrosamente, salvar da vulgaridade e elevar a uma pureza quase angelical: uma gota de esperma que cai do céu no rosto de Andrea Caracortada.
Assim como "Ata-me", "Kika" também termina num carro, em plena estrada. Mas, no comovente final de "Ata-me", o movimento dramático era centrípeto: os três personagens cantavam, irmanados contra as adversidades. Em "Kika", ao contrário, a tendência é centrífuga: o desejo, errante e volúvel, impõe novas relações.
Talvez menos romântico, Almodóvar mostra de todo modo que continua na estrada e que ainda tem muito a rodar.

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