São Paulo, sexta-feira, 16 de setembro de 1994 |
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Lupicínio Rodrigues faria 80 anos hoje
SÉRGIO AUGUSTO
No peito dos seus orgulhosos, culpados e desesperados amantes batiam firme o ciúme, o despeito, o remorso e o horror. Eventualmente, uma saudade louca da costela perdida –que, quando muito apertava, abria frestas até para o masoquismo ("É melhor brigar juntos/do que chorar separados"). Raras vezes investiu na felicidade plena e longa (em "Meu Barraco", propõe à amada "juntar os cabelos brancos na mesma cama e dormir"), preferindo remoer aquelas amarguras sem cura para quem não tem nervos de aço. Ódio? Claro, como não? Sob a forma daquilo que os alemães chamam de "schadenfreude", vocábulo sem tradução à altura em qualquer língua –desfrute sádico da desgraça alheia, digamos assim. Exemplo máximo: a primeira estrofe de "Vingança", que na enfática dolência de Linda Batista bateu recorde de vendas em 1951 - "Eu gostei tanto/tanto quando me contaram/que te encontraram bebendo e chorando na mesa de um bar". Reza a lenda que alguns suicídios teriam sido cometidos por influência desse clássico do samba-canção. Provas não há, ao contrário de outra história pitoresca, ligada a outra jóia da cornitude, cuja adoção pelas empregadas domésticas levou um baiano a publicar o seguinte anúncio num jornal de Salvador: "Precisa-se de empregada doméstica que saiba lavar e cozinhar, mas não cante 'Nervos de Aço'". Pioneiro, propriamente dito, ele não foi porque antes (1929) de todos os sambas-canções Henrique Voegler e Marques Porto compuseram "Linda Flor". Por toda a década de 40 e 50, no entanto, remando contra a maré favorável a espécies mais animadas de samba, Lupicínio impôs sua soberania, sem sair de casa. A casa ficava em Porto Alegre, berço que só deixava para curtas esticadas aos redutos onde Francisco Alves (seu primeiro grande intérprete), Haroldo Lobo, Nassara e Ary Barroso faziam a história da boemia carioca. Caso único de projeção nacional fora do eixo Rio-São Paulo, Lupicínio assim foi batizado em homenagem a um herói da Primeira Guerra Mundial. Entregou-se precocemente à música, mas não houve jeito de aprender como as notas funcionam numa pauta ou que cordas vibrar num violão. Escrevia as letras, bolava a música assobiando baixinho e pedia a algum amigo para escrevê-la. Não obstante, descobriu soluções harmônicas surpreendentes e fraseados desconcertantes. Seus dramas afetivos, sem dúvida contaminados pelo passionalismo tangueiro, seriam a trilha sonora ideal para as guerras conjugais de Dalton Trevisan e as tragédias urbanas de outro Rodrigues, o Nelson, conforme observou há tempos o crítico Tárik de Souza. De Noel Rosa, que aliás foi um dos primeiros a exaltar seu talento ("Esse menino vai longe", vaticinou por volta de 1933), também recebeu alguma influência. Transparente em "Brasa", que poderia ter sido composto pelo poeta de Vila Isabel: "Você parece uma brasa/toda vez que eu chego em casa/dá-se logo uma explosão/ciúmes de mim não acredito/pois, meu bem, não é com grito/que se prende um coração". Relegado ao ostracismo nos anos 60, Lupicínio beneficiou-se de um revival na década seguinte, quando Elis Regina, João Gilberto, Paulinho da Viola, Gal Costa, Caetano Veloso e Gilberto Gil tiraram do baú "Cadeira Vazia", "Quem Há de Dizer", "Esses Moços", "Volta", "Nervos de Aço" e "Felicidade", deixando "Se Acaso Você Chegasse" para usufruto exclusivo de Elsa Soares. Virou, pouco depois, tema de ensaios e tese. Há muito o que se dizer a respeito de seus versos e de suas rimas, por vezes, surpreendentes. Em "Sozinha", por exemplo, ele se deu ao desplante de rimar mulher com bicho-do-pé. Não é para qualquer um. Texto Anterior: ENTRELINHAS Próximo Texto: Recomendadas Índice |
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