São Paulo, sexta-feira, 16 de setembro de 1994
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Esprit de corps

A reação do Senado à cassação da candidatura do presidente da Casa, Humberto Lucena, é altamente ilustrativa do estágio de desenvolvimento político em que se encontra o país. A punição, como se sabe, foi imposta pelo Tribunal Superior Eleitoral pelo uso de recursos públicos com fins eleitorais e representa, nesse sentido, um avanço no processo de moralização da atividade política que vem sendo cobrado pela sociedade.
Muitos dos pares de Lucena, porém, e –mais grave– a própria instituição acorreram a bradar contra a inovadora decisão da Justiça, que contrariou a tradição de impunidade vigente e puniu o desrespeito ao bolso do cidadão. Há mesmo a expectativa de que o Senado apele ao Supremo Tribunal Federal na tentativa de reverter a decisão.
Não se trata aqui, é mais do que evidente, de contestar o direito de recurso ao Judiciário –este é inafastável, garantido pela Constituição. Mas não pode deixar de chamar a atenção que, com as exceções isoladas de praxe, o Senado tenha exibido uma preocupação muito maior com a defesa dos interesses da corporação do que com a defesa dos interesses da sociedade.
E a sua preocupação, de uma forma deplorável do ponto de vista da moralidade pública, parece justificar-se. Há suspeitas de que pelos menos outros 16 parlamentares teriam praticado o mesmo abuso de Humberto Lucena, e a expectativa do Ministério Público Eleitoral é de que, com um exemplo de punição efetiva, comecem a surgir muitas novas denúncias também nos âmbitos estadual e municipal.
Não surpreenderia, de fato, que décadas de impunidade tivessem disseminado o costume de usar dinheiro da população para propaganda política pessoal.
De todo modo, se houvesse um mínimo de sintonia entre a Câmara Alta e a população que a elege –e mesmo entre aquela e o momento histórico atual–, seria de esperar uma reação firme da Casa no sentido de buscar coibir a prática e proteger o dinheiro do cidadão. O Brasil de hoje, ainda que de forma lenta e até errática, exibe uma tolerância cada vez menor face a abusos e irregularidades, por mais frequentes e corriqueiros que possam ter sido –ou mesmo que ainda sejam.
Para o Senado, ignorar essa transformação, ou tentar resistir a ela, só vai corroer ainda mais a sua imagem já tão desgastada e distanciá-lo ainda mais da população que deveria representar.

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