São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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As barreiras do sonho

PAULO SÉRGIO PINHEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"... nenhum relato de sonho pode transmitir aquela sensação, aquele ar avassalador de absurdo, surpresa, e perplexidade e um tremor de inquieta revolta, aquela noção de estar sendo capturado pelo incrível..." Essa epígrafe de um romance, situado no Panamá, que Graham Greene nunca escreveu, veio-me à cabeça ao ler "Utopia Desarmada", de Jorge Castañeda. Um sonho querer capturar a evolução da esquerda latino-americana, no seu "mosaico de ideologias", da revolução ao reformismo no final do século 20.
Outros fracassaram porque tentaram estabelecer conexões entre coerências despedaçadas e plataformas irrelevantes. Castañeda, sem pretender abarcar todos protagonistas e figurantes, traça um monumental quadro, aberto à surpresa e ao inesperado, das revoluções ganhas e perdidas em Cuba, Nicarágua, El Salvador, a resistência no Chile e na Argentina, as guerrilhas da Colômbia, o Sendero Luminoso no Peru.
Além das últimas novidades, como o reformismo da esquerda mexicana de Cárdenas ou "a mais original experiência que ocorreu na esquerda, não só no Brasil, mas na América Latina", o Partido dos Trabalhadores. Até os impasses da democratização da democracia e como compatibilizar os vários imperativos de reformas econômicas e sociais com as estabilizações.
A narrativa é fascinante porque em todos os contextos estão vidas concretas. "Seu pai morreu na Resistência Francesa, pouco antes de ele nascer em 1945. Victor Romeo (... El Guajiro) começou sua vida muito jovem, nos anos 1960, na Força Aérea Cubana. Ela terminou anos mais tarde em Manágua, na noite em que os sandinistas perderam as eleições presidenciais de 1990." Nesse percurso, uma síntese do drama. Da trama das vidas se encadeiam os roteiros da política.
Na trama, formidáveis paradoxos: se a esquerda na América Latina na democracia tem antepassados hoje, são justamente todos aqueles desvios dos partidos comunistas tão execrados pela luta armada, eleições, não violência e alianças; "a estratégia certa, talvez, embora bem provavelmente pelas razões equivocadas". Inesperados encontros: Fabricio (nome de guerra de Debray, tirado de "A Cartuxa de Parma", de Stendhal...) jantando na rua Notre Dame des Champs, em Paris (com Salvador Samoya, líder da guerrilha de El Salvador) mais interessado em saber sobre as razões do assassinatos de um líder do que suas consequências para a luta.
Constatações implacáveis: um dos capítulos mais inspirados reexamina o papel tão desproporcional que os intelectuais desempenharam nas sociedades latino-americanas: "Guardas da consciência nacional, críticos e pedindo prestações de contas, baluartes dos princípios e da honestidade: por quase cinco séculos os intelectuais, desde Frei Bartolomeu das Casas (...) sistematicamente foram substitutos de inumeráveis instituições e atores". Cornucópia de causas sempre substituídas por outras. Mediadores entre experiências, daqui e de fora, incapazes muitas vezes de se comunicarem entre si.
"Intelectuais são como o vidro delicado, o cristal, que pode quebrar com o ruído", volta um interlocutor de Graham Greene. O papel deles será ultrapassado quando surgem outros interlocutores, as organizações de base, as não-governamentais, as ONGs. Castañeda não trata os movimentos sociais à parte, nem os sacraliza e os reintegra na nova dinâmica política. Capta toda cena, enquanto que alguns se limitam apenas à crônica da engenharia política das classes dirigentes.
Com devastadora franqueza, expõe os largos territórios ainda não-mapeados das práticas democráticas na sociedade. Aponta para a questão-chave da transparência: a democratização da mídia. Mostra, num belo estudo comparado, como torná-la "independente e responsabilizável, livre e justa" é mais complicado na América Latina do que em qualquer outra parte: quando a televisão é privada e próspera (Brasil, México) "é totalmente subserviente ou totalmente desprovida de responsabilidade", quando estatal, propagandística, fechada. Castañeda chama nossa atenção, no Brasil, por não se ter aprofundado esse tema depois que "aberta manipulação e gritante favoritismo do noticiário da Rede Globo desempenhou um papel crucial da unção do primeiro presidente eleito do Brasil depois de 1959", e ter-se deixado intocados os monopólios de redes.
Cinco anos depois, nas atuais eleições, a sociedade brasileira se defronta com as mesmas práticas de manipulação. Nenhum dos mecanismos de controle democrático das comunicações da Constituição de 1988 foram concretizados. Concessionários de redes, seus apaniguados, e uma centena de parlamentares, governadores, ministros, donos de antenas, "coronéis eletrônicos" cometem abusos de favoritismo eleitoral impunemente. Apesar do imperativo democrático, as práticas políticas do Estado e na sociedade continuam carregadas pelo legado do autoritarismo.
Como no anúncio de cigarro, "you've come a long way, baby", a esquerda na América Latina, desde 1919 – quando a vaga revolucionária bate no México com a chegada de um enviado da Internacional Comunista – fez um longo percurso. Depois de guerrilhas e revoluções, fracassos e sucessos, a esquerda, em meio uma multidão de famintos multiplicada como jamais previram os pais fundadores, pode lutar em eleições por soberania, democracia, crescimento econômico e justiça social. "Mas ao menos ela será julgada por seus próprios méritos, e não através das sombras anticomunistas e anti-soviéticas projetadas de tão longe". A esquerda latino-americana ultrapassou as barreiras do sonho.

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